sábado, fevereiro 25, 2006

Hue: celebrar a morte em vida

Chegamos a Hue as sete da manha. O esquema destes autocarros "open-tour" que proporcionam viagens a precos muito em conta eh terminarem o trajecto junto de um hotel filiado/associado. Tendemos a evitar estas propostas "impostas". Preferimos por as mochilas as costas e procurar um pouso diferente, mesmo que pareca uma bencao ter um quarto ah nossa espera apos 12 cansativas horas de viagem.
Desta vez andamos pouco ate encontrar um alojamento aceitavel e com Internet gratuita. Tomamos um pequeno almoco sofrivel (o cafe aqui eh doce, algo intragavel para quem o costuma beber sem acucar) e rumamos ah citadela/cidade purpura proibida de Hue. O complexo de edificios construido a partir de 1804 pelo imperador Gia Long perdeu grande parte da imponencia devido aos bombardeamentos norte-americanos durante a Guerra do Vietname. As paredes resistentes pertencem a saloes cerimoniais, aposentos de concubinas e eunucos, palacio do imperador, entre outros espacos munidos de requintadas decoracoes. A rodear estes edificios encontramos vastidoes de mato que, juntamente com os trabalhos de restauro que parecem eternizar-se noutros edificios, transmitem um ar de abandono. Sentimos pena de nao conhecer este complexo no seu auge arquitectural mas resistimos estoicamente ah hipotese de regressar ao passado atraves das coloridas e "ricas" roupas chinesas disponiveis para alugar. Mas ha quem as vista e depois tire fotografias "imperiais". A primeira tarde em Hue eh ocupada com a procura de um restaurante e dois templos. O local escolhido para almocar fechou e nao descobrimos, por incrivel que pareca, nenhuma alternativa no bairro onde estamos. Resolvemos "despachar" os templos para regressar ao nosso hotel e comer. Acontece que o mapa do nosso livro-guia tem outros planos e o que parece perto e facil revela-se longe e complicado. Seguimos numa estrada ao longo do rio ate que, sem perceber bem como, nos vemos ah beira dum bairro de lata flutuante. Nos barcos atracados na margem constata-se miseria. Ah medida que avancamos surgem no nosso caminho deficientes, velhos, criancas. Apos suplantarem a surpresa de ver turistas a pe por aqueles sitios, pedem-nos esmola. Um miudo bate-me nas costas e foge depois de nao lhe darmos dinheiro. Comeco a sentir que a minha camara fotografica da demasiado nas vistas e eh um alivio quando encontramos o primeiro pagoda. Nos jardins de Dieu De, monges meditam enquanto rapazes e raparigas com fardas de liceu metem conversa connosco. Insistem para eu lhes passar a camara para as maos (a fim de nos tirarem uma foto?). Nao o faco, saimos do local e, teimosamente, continuamos a nossa caminhada desconhecido adentro, ate concluirmos que eh melhor voltar para tras. Famintos, suados e cansados, mas ja em terra "segura", juramos nao confiar mais em mapas minusculos onde tudo parece simples.
No dia seguinte, regressamos as excursoes organizadas para visitar os mausoleus reais nos arredores de Hue. A viagem eh feita ao longo do Rio Perfume -- sim, novamente -- num Barco Dragao. O caminho eh aproveitado pelas tripulantes (todas mulheres, com a excepcao do rapaz-piloto) para sessoes de vendas: estatuetas, pinturas em seda, postais, roupas... O grupo mostra-se pouco permeavel e direcciona a atencao para a paisagem. O dia esta finalmente radioso. Na margem distinguem-se chapeus conicos a trabalhar a terra. Na agua deslocam-se barcacas cheias de areia dragada por mulheres (tal como na India, cabe-lhes executar grande parte do trabalho pesado).
Paramos no Thien Mu, pagoda construido em 1601. Alem dos templos, a atencao centra-se nas criancas a tratar dos bonsais que embelezam os jardins. Fingem-se alheias aos movimentos dos turistas que tentam captar "A" fotografia da viagem, mas la acabam por posar... O tempo eh escasso para nos perdermos no imenso complexo. A ansia de mais uma foto -- nao obrigatoriamente das criancas -- faz com que seja dos ultimos a chegar ao barco, situacao que se ira repetir ao longo do dia (contrariamente ao que eh costume). Simplesmente porque os mausoleus revelam-se, um apos outro, magnificos complexos de templos, palacios, tumbas, espacos de lazer. Idealizados pelos imperadores da dinastia Nguyen, parecem mini-cidades criadas para o deleite dos monarcas em tempo de vida, alem de moradas faustosas para os corpos defuntos. Lagos e florestas rodeiam as belas e imponentes construcoes, solicitando contemplacoes e deambulacoes demoradas. Nada disso eh possivel, com grande pesar nosso. A unica altura em que o ritmo acelerado eh bem vindo acontece nas viagens de moto entre a margem do rio e dois dos mausoleus. Mal atracamos ja nos esperam dezenas de motoqueiros, femininos e masculinos, que apos comunicarem o preco de ida e volta nos convidam a saltar para o banco da mota e a nos agarrarmos bem. O vento a bater na cara afugenta o calor e promove uma sensacao de liberdade. Ah qual eu resisto, nao abracando a minha condutora conforme os incitamentos dos motoristas masculinos...
Apesar das velocidades indesejadas, a excursao aos mausoleus acaba por tornar a passagem por Hue ainda mais justificada. Eh com o sentido do "dever" cumprido que preparamos nova etapa: Hoi An. [PMM]

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Hanoi: a cidade vermelha

As ultimas horas passadas em Hanoi, capital do Vietname, alteram a cor da cidade. O branco continua a marcar o ceu, mas eh o vermelho quem mais ordena nas ruas. Primeiro mascarado no bronze da estatua de Lenine que ainda nao caiu, como aconteceu noutras paragens do mundo ex-comunista. Depois no mausoleu de Ho Chi Minh, complexo de edificios onde pontificam bandeiras vermelhas, ora comunista, ora vietnamita. Percebemos que a visita ao Tio Ho, fundador da nacao, sera um momento solene. E caricato. Na fila para o detector de metais a confusao instala-se sobre o que se pode ou nao se pode levar para o mausoleu. Pessoas voltam atras para deixar sacos, depois "arrependem-se" e tentam reave-los; uns conseguem, outros nao, sem que se entenda qual a norma aplicavel. Nos acabamos por deixar os nossos pertences no "bengaleiro" e eh de maos nos bolsos que rumamos ah entrada da tumba. Um guarda apressa-se a "ensinar" que maos nos bolsos eh proibido. Fotografias nem se fala, mas as camaras todas, supostamente, ja ficaram retidas. Assumimos a posicao mais reverencial que nos lembramos (bracos colados ao tronco, costas direitas, olhar taciturno) para circundar a redoma que contem o corpo de Ho Chi Minh. O "quadro" eh estranho: o Tio Ho parece um boneco de cera -- iluminado artificialmente de uma forma que oscila entre o macabro, o ridiculo e o iconico -- guardado por soldados-estatua. A romaria eh rapida pois nao podemos parar o que concede tempo para espreitar o Museu de Ho Chi Minh (nao queria gastar o nome do homem mas ele esta por todo o lado), onde interpretacoes artisticas dos pensamentos/ideologia comunista partilham o espaco com objectos pessoais do lider revolucionario. A amalgama eh esquisita mas garante ao Museu uma qualidade incontestavel: nunca vimos nada igual.
O mesmo se pode aplicar ao Museu de Etnologia visitado durante a tarde (depois de andarmos horas/quilometros perdidos pela cidade, sem mapa, a tentar ir parar ao dito cujo, situacao resolvida pela AV com recurso a um autocarro local...) e que acaba por justificar a nossa opcao de nao ir a Sapa, aldeia nas montanhas povoada por tribos de minorias etnicas. O espolio do museu integra videos, objectos originais, reproducoes, textos explicativos, sobre os mais variados dominios -- instrumentos musicais, utensilios agricolas, vestuario, habitacoes, rituais sociais e religiosos -- da vida das minorias etnicas existentes no Vietname. Leva horas a percorrer esta imensidao de informacao que produz uma ideia ampla e rigorosa da riqueza etnografica deste pais e que dificilmente seria entendida nos mercados para turista ver (e comprar) em Sapa.
A noite chega e Hanoi tinge-se ainda mais de vermelho. Sao os stops das motos, os anuncios de neon, as lanternas chinesas. Despedimo-nos da cidade -- e da regiao Norte do Vietname -- com compras no mesmo tom (uma Tshirt, um bone) e a compra de um bilhete de autocarro no Cafe Sinh verdadeiro.
O comeco do trajecto ate Hue esta marcado para as 19 horas e so na manha seguinte chegaremos ao destino. O livro-guia avisa que esta forma de viajar -- nos autocarros para turistas -- impede o contacto com o Vietname real mas preferimos jogar pelo seguro nesta etapa inicial, ainda por cima tao longa. Chegamos cedo ah "sala de espera" que consiste nas mesas de um cafe (que nao eh Sinh...) decadente. Porque quem vai ao mar alivia-se em terra, rumamos ao WC do cafe. Comeca mal a viagem, pois eh a pior experiencia higienica desde que iniciamos esta aventura. Nem na India encontramos algo tao sujo.

A hora da partida aproxima-se e as mesas enchem-se de passageiros. Todos vietnamitas. Ja no autocarro, constatamos que alem de nos, apenas viajam mais dois pares de turistas ocidentais. Afinal, este eh mesmo um autocarro "local". Assim que o veiculo arranca, dois ou tres vietnamitas comecam a colocar colchoes, mantas e almofadas no corredor. Sao os motoristas que farao o resto do percurso e que agora tem de dormir. O andamento faz-se em grande velocidade, com acompanhamento permanente de buzinadelas. Pela janela observamos os campos cultivados, iluminados pelo luar. So perto da meia-noite eh que o autocarro sossega da sua marcha desenfreada. Descida em passo acelerado dos passageiros que se dividem entre a mijinha no terreno baldio e o sentar-se nas mesas do restaurante de beira de estrada. Finalmente podemos comer.
Mas nao ha menu. Em cima de uma bancada, estao expostos os petiscos disponiveis. Tripas, miolos, chouricos e carnes suspeitas, entre outras "iguarias" que nao conseguimos decifrar. Na parede oposta, outro balcao, com frascos de liquido transparente onde nadam lagartos e serpentes (mortos). Compramos pao, sem nada, para espanto da senhora que nos atende. Nem vai um caldinho de iguana, parece dizer? Nao obrigado. E comemos o pao seco como se fosse a melhor sande do mundo. [PMM]

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Halong Bay: a mae de todas as excursoes

Deixamos propositadamente Halong Bay para o final das excursoes planeadas. As viagens anteriores tinham a funcao de servirem tambem como um teste as agencias de viagens escolhidas. Sem mais "cartuchos" para gastar, voltamos a arriscar um tiro no escuro, ou seja, seleccionar um operador turistico com base no instinto. Como o clima teima em manter-se nublado, optamos por uma excursao de um dia, obviamente curta para apreciar devidamente este patrimonio com chancela da UNESCO. Sabemos, no entanto, que o tempo frio impediria os banhos de sol e de mar "anunciados" em todos os folhetos. A viagem de autocarro que nos leva a Halong Bay provoca boas impressoes: a guia fala um ingles bastante aceitavel e o grupo parece animado. Chegados ao porto onde centenas de barcos, grandes e pequenos, esperam ansiosamente por turistas, somos divididos por subgrupos consoante os dias de excursao. Ja no nosso "galeao" de one-day-tour, bastam poucos minutos para se instalar o bom ambiente, em grande parte devido a um comunicativo norte-americano, tambem a fazer uma volta ao mundo (o que o levou a passar por Lisboa), que se encarrega de fazer a ponte entre os excursionistas. Demorou um pouco mais de tempo a apreciar a beleza de Halong Bay, conjunto de cerca de 2 mil ilheus espalhados pelo golfo de Tonkin. As formacaoes rochosas que emergem da agua dispersam-se por diferentes tamanhos e assumem formas peculiares (o simbolo de Halong Bay sao dois monolitos que parecem galos a lutar). Alem da passagem pelos ilheus, a navegacao tem paragem numa das ilhas de maiores dimensoes, onde visitamos duas grutas em que as estalagtites e estalagmites assumem formas e proporcoes esplendidas, embora nem sempre com os significados mirabolantes e rebuscados que os guias tentam impingir. As iluminacoes artificiais dao um toque colorido e surreal as cavernas.
O almoco eh servido a bordo enquanto estamos atracados perto de uma aldeia piscatoria de casas construidas na agua. Saltamos para uma das construcoes assentes em estrados de madeira para observarmos uma especie de fastfood marisqueiro (ve-se o marisco/peixe nos viveiros, escolhe-se, paga-se e espera-se que seja cozinhado). Ao largo da nossa embarcacao, avistamos um pequeno bote cheio de miudos. Aproximam-se e pedem dinheiro. E nao deixam de pedir. Depois tentam abordar o barco. Sao rufias, mas nao sao miudos da rua porque vivem no mar. Regressam a casa depois de fazerem gestos atrevidos sobre a AV (sem ela ver). Um cao espera-os na plataforma de madeira que forma o cais da habitacao. O animal eh arrastado para dentro de casa. Seguem-se ganidos intensos. Depois um silencio desolador. Nao voltamos a ver o cao.
No regresso da excursao, a conversa flui no tombadilho entre um casal portugues (sim, nos), um par composto por um irlandes e uma belga (tambem numa grande viagem que tinha em comum a passagem inicial pela India) e um dos guias da excursao. Fala-se de varios assuntos e tambem do cao. O rapaz confirma que pode bem ter sido morto. A carne de cao eh uma iguaria no Vietname, sendo comum a existencia do "petisco" em dias festivos. Ate pode acontecer que, por uma ocasiao especial - como receber a visita de familiares - se mate o cao da casa para compor a mesa... Enquanto os ocidentais expressam a sua tristeza pelo destino dos "pobres" animais (no fundo, percebemos que eh uma questao cultural mas esta eh daquelas que nos custa a digerir...), o guia vietnamita solta uma gargalhada franca e contagiante enquanto diz "Vietnamese eat everything!!!"
Nos nao e depois de satisfeita a curiosidade sobre Halong Bay, maravilha plenamente confirmada apesar do dia cinzento, a noite em Hanoi eh adocicada pela descoberta duma geladaria frequentada por jovens (e respectivas motas) locais e sem menu em ingles. Pedimos um cone de "cocoa" que parece suficientemenre parecido a cacau. Delicioso. O segundo cone, ja munido de respectiva bola de gelado, eh comprado sem perceber o sabor em causa. Volta a agradar, justificando plenamente a afluencia dos adolescentes. O trajecto para o quarto, apesar de uma Hanoi friorenta e ja meio deserta, eh saboroso. E provoca a vontade de voltar um dia, mais solarengo, a esta cidade. Para repetir a dose de gelados e descobrir novos cambiantes de Halong Bay. [PMM]

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Hoa Lua/Tam Coc: novo capitulo do MMA*

Apesar da insatisfacao com a agencia de viagens seleccionada, ou melhor, com o guia que nos calhou, vamos ao mesmo Sinh fajuto para marcar nova excursao, desta vez a Hoa Lua, antiga capital real do Vietname, e Tam Coc, dita a Halong Bay dos arrozais. Antes da comprar os bilhetes, certificamo-nos que nao sera o mesmo guia a liderar a excursao. Garantem-nos que nao. No dia seguinte, constatamos que nao eh, de facto, o mesmo rapaz, embora o resultado seja semelhante: pouco ou nada se entende do ingles macarronico falado pelo guia.
Fazem falta as explicacoes para entender os significados de Hoa Lua, cidade edificada durante as dinastias Dinh e Pre-Le (969-1009). Pouco resta do esplendor de outrora; um pagode eh a construcao que melhor resistiu ao passar do tempo. Temos de nos "encostar" ah excursao do lado e ouvir o respectivo guia para entender que ate a orientacao das estatuas tem os seus segredos, neste caso a representacao da mulher do imperador morto que, ja casada com o imperador sucessor, teve que assistir ah sua estatua ser colocada de costas para o mausoleu do marido defundo. Nao se fosse pensar que ela tinha saudades dele...
A excursao prossegue ate Tam Coc (Tres Grutas), em pleno rio Ngo Dong. Na margem esperam-nos mais mulheres-remadoras. Cada barco inclui mais uma pessoa alem da "capita de bordo" (nuns casos outra mulher/rapariga, noutros um rapaz) que pega num pequeno remo e ajuda ah navegacao. A paisagem eh mais bonita do que a avistada no rio do Perfume mas o ceu nebuloso volta a evitar grandes deslumbramentos. A passagem por debaixo das famosas grutas acaba por ser o momento significante do passeio. A luz do sol desaparece gradualmente ao mesmo tempo que o tecto se aproxima do nosso barco ao ponto de nos obrigar a inclinar a cabeca. Ressurgidos da escuridao, volta a visao dos pescadores no rio, dos camponeses nas margens e dos monolitos de pedra que compoem a silhueta do horizonte. Mas nenhuma excursao de barco no Vietname fica completa sem uma rabula. Desta vez, temos direito a duas. A primeira acontece quando paramos brevemente para descanso da remadora e, pensamos, para apreciarmos a vista. Um novo barco acerca-se rapidamente do nosso e impede a contemplacao recem-iniciada. A remadora-vendedora quer vender snacks e bebidas em lata. Inicialmente a nos, turistas certamente sequiosos (apesar do frio de rachar). Depois de dizermos que nao, avanca o plano B: temos de comprar bebidas para a nossa remadora, desgastada do esforco de nos transportar. Vemos outros turistas comprar Coca-Colas para as suas remadoras, mas as latas sao colocadas fechadas atras do banco do barco (mais tarde regressarao certamente ah embarcacao da vendedora de snacks...). A segunda rabula revela o intuito de uma segunda pessoa em cada barco. Afinal nao eh para ajudar no remar, mas sim para - ja no regresso - retirar bordados de um saco de plastico e tentar vende-los ao turista. Este eh o esquema mais perfeito a que ja assistimos. Com o vendedor(a) ja no barco, nao ha forma de escapar ao assedio ate ao final da viagem (mas nao foi por isso que tiveram mais sorte connosco...).
A excursao termina com duas novas licoes. Licao um: nunca esperar conhecer todos os estratagemas de venda usados no Vietname: ha sempre um que nos consegue apanhar desprevenidos. Licao dois: deste Sinh cafe "falso" nao se pode esperar melhor. O que vale eh que ha muito por onde escolher... [PMM]


* (Manual do Marketing Agressivo...)

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Perfume Pagoda: fe no cimo da montanha

As ruas de Hanoi estao pejadas de cafes que funcionam como agencias de viagens. Eh complicada a tarefa de escolher um deles para marcar uma excursao. Embora as propostas sejam praticamente todas semelhantes, o resultado final pode ser bastante diferente. Recorremos inicialmente ao nosso livro-guia para nos orientarmos neste emaranhado de agencias, mas depressa constatamos que os locais sugeridos apresentam pacotes demasiado pesados para o nosso orcamento. Com base no instinto, decidimo-nos por um dos varios estabelecimentos que ostenta o logotipo Sinh -- originalmente um cafe/agencia de Saigao --, situado perto do nosso hotel. Como leremos mais tarde, nao existe uma legislacao que impeca diferentes empresas de utilizarem os mesmos nomes e ate os mesmos logotipos. Face a esta lacuna legislativa, eh certo e sabido que quando um restaurante (ou uma agencia) se torna famoso, rapidamente surgem inumeras copias que utilizam a mesma denominacao e imagem.
Na manha da excursao somos levados ate ao escritorio de uma tal de Open Tour Travel. O Sinh Cafe escolhido nao eh mesmo o original. A AV protesta mas como a excursao esta paga e nao nos apetece "perder" um dia, cedemos ir ao Perfume Pagoda acompanhados por um guia cujo ingles mal se percebe. Depois de uma viagem de autocarro, chegamos ao Rio do Perfume. Enxames de remadoras, novas e velhas, esperam os turistas em barcos achatados. Mulheres-fotografas disponibilizam-se a acompanhar os viajantes para registar em imagens este passeio ao longo de um rio calmo, ladeado por pequenas elevacoes rochosas. O dia continua cinzento e frio pelo que apos o desembarque sabe bem o inicio do trekking acelerado, mas o agradavel rapidamente se torna infernal, com o ritmo desenfreado imposto pelo guia a so ter descanso em bancas de bebidas previamente combinadas. Quatro quilometros apos o desembarque, numa gruta no cimo da montanha Huong Tich, falta tempo para descobrir os meandros de um dos templos mais importantes do Vietname, local de peregrinacao budista. Os altares evidenciam novamente a mistura de influencias que compoem a "tripla religiao" em voga no Vietname, derivada do budismo mahayana, taoismo e confucionismo.
Apos uma descida que nos faz passar mais uma vez em ritmo vertiginoso por inumeras bancas onde nos "oferecem" bebidas em lata, comida e ate poltronas para descansar enquanto se ve um video-CD, almocamos comida viet numa mesa corrida. O grupo de turistas com que viajamos nao eh muito comunicativo pelo que a interaccao se resume a sorrisos de circunstancia e pedidos para passar o molho de soja, enquanto a AV continua a sua luta (ainda por ganhar) para domar os pauzinhos chineses. A excursao contempla ainda uma visita rapida pos-almoco ao complexo labirintico de templos que compoem o Perfume Pagoda - sem explicacoes do guia... Perco-me da AV enquanto me aproximo dos gritos humanos estridentes que ecoam pelo ar. De repente, deparo com um vetusto monge, de barba longa e branca, que se encaminha vagarosamente para a sua habitacao. Regresso ao convivio dos restantes turistas para encontrar a AV preocupada e farta de uma irritante suica com a mania de contrariar tudo aquilo que dizemos. Consigo arrancar do guia que o homem avistado eh um dos monges mais considerados do Vietname e que o Perfume Pagoda eh a sua casa. De novo no barco, apreciamos pescadores na faina a largarem pequenas cestas no rio. Nas margens, la estao as impressionantes formacoes de monolitos de pedra, caracteristicas da regiao. Terminado o percurso, nenhum dos quatro ocupantes do nosso barco tem trocos para dar a gorgeta ah remadora, tal como o guia nos tinha ordenado (nem sequer foi uma sugestao, o que nos irritou ja que o folheto da excursao referia que estava TUDO incluido menos as bebidas...). Afastamo-nos da margem pedindo desculpas mas os queixumes nao se fazem esperar. E durante centenas de metros conseguimos ouvir os gritos da remadora, descontente com os "clientes" que lhe calharam.

No Vietname, como constataremos cada dia da nossa estada, um dia nunca acaba quando se pensa e, apesar do cansaco da excursao e da viagem de autocarro que nos coloca em Hanoi, decidimos aproveitar a existencia de bilhetes suplementares para o espectaculo de marionetas de agua a que tentaramos assistir no dia anterior (estava esgotado). Nesta arte desenvolvida devido aos efeitos da moncao, as marionetas movimentam-se numa pequena piscina. Os bonecreiros, com agua ate ah cintura, estao ocultos pelo cenario. As historias e lendas representadas em accoes rapidas, acompanhadas pelos sons de uma orquestra e falas em Vietnamita, criam um universo infantil que diverte sem arrebatar. O arrebatamento estava guardado para o jantar no Little Hanoi (existem dois com o mesmo nome/placa, na mesma rua...) onde os lombinhos de atum agri-doce e as gambas com caju deliciam o paladar sem a bateria de condimentos/especiarias de outras gastronomias. Saboreamos o resto da cerveja no aconchego do restaurante, antes de sairmos para as ruas apertadas do velho bairro, onde a vida decorre, como habitualmente, num fremito de agitacao e de convivio. As lojas, os hoteis, os cafes, bares e restaurantes, os sitios de Internet, ocupam os espacos terreos dos edificios e, se o frio nao for muito, escancaram as suas portas (sao raras as portas fechadas). No Vietname, vive-se (n)a rua, seja num banquinho de plastico disposto no passeio ou encostado ah motocicleta parada quase no meio da estrada. [PMM]

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Hanoi: a cidade branca

O despertar faz-se de madrugada. Malas feitas, escadas descidas, encaramos o funcionario a quem anunciamos a nossa partida. Percebemos que nao fica contente. O negocio nao esta em passarmos uma noite num quarto barato, mas sim em estadas prolongadas, entrecortadas pelas excursoes propostas. Tento pagar a conta de sete dolares mas o troco que o rapaz me pretende dar na moeda local (Dong) eh calculado a um cambio manifestamente errado. Resgato a nota de dez dolares, afirmo que afinal pago em Dongs, mas ao cambio dele. A confusao instala-se. O rapaz comeca a esbracejar enquanto vocifera um "You make me angry!!!". Peco-lhe para se acalmar enquanto a AV lhe relembra o episodio da agua... e que talvez devessemos chamar a policia. Contrariado, aceita o pagamento em Dongs, no cambio correcto e justo. Saimos do hotel-pesadelo para as ruas cinzentas de Hanoi. O ceu encoberto, juntamente com o sucedido, nao permite que as cores locais sobressaiam. Mas ah nuvens que nao conseguem tapar a beleza de certos sitios. E, nos dias seguintes que iremos passar em Hanoi, ja instalados num hotel familiar onde o quarto eh pior mas a simpatia e a seguranca maiores, descobriremos uma cidade com brilho.
Desdobramos o mapa para nos abeirarmos do Museu das Mulheres. Pelo caminho fazemos ouvidos moucos aos insistentes convites dos condutores de riquexo e mototaxi ("Where you go???" eh a frase mais ouvida). O museu eh um tributo ao espirito aguerrido da mulher viet, seja em tempo de conflito ou de paz. Percorrido e magnifico espolio espalhado por tres andares, fica-se com a sensacao de que a sociedade vietnamita eh obra exclusiva da classe feminina. O unico homem nao obliterado eh Ho Chi Minh, retratado em varias fotografias que o colocam, em poses de "pai-mentor", entre dezenas de raparigas e mulheres. Mas a (omni)presenca do Tio Ho estende-se as ruas e, inclusive, as nossas carteiras. O rosto de Ho Chi Minh surge em cartazes, tshirts e em todas as notas de Dong.

No caminho para o primeiro de muitos pagodas, a bandeira do Vietname (estrela amarela sob fundo vermelho) torna-se outra presenca constante, volta e meia acompanhada da tradicional bandeira comunista com a foice e o martelo. Estamos efectivamente numa Republica Socialista, mas respira-se um ar de abertura ao mundo, patente nas lojas de marcas ocidentais que partilham paredes com o comercio tradicional. As estradas estao infestadas de motas e "perdemos" tempo simplesmente a ver/fotografar o fluir do transito, numa mistura intensa de cor, som e movimento. A poluicao que procura alojar-se teimosamente nos nossos pulmoes, impele-nos para novos destinos. Encontramos guarida no pagoda do Lago Hoan Kiem, repleto de influencias chinesas (estatua de Confucio, caracteres em faixas e paredes), japonesas (bonsais), e viets (arquitectura), onde os sentidos sao confundidos pelo cheiro a incenso e por altares repletos de oferendas/objectos simbolicos. No magnifico Templo da Literatura, intrincado de construcoes com significado filosofico-espiritual, temos direito a um espectaculo gratuito de musica tradicional. As notas arrancadas pelos artistas aos estranhos instrumentos dispostos no palco contribuem decisivamente para apagar os efeitos da ira matinal do nosso anfitriao vietnamita e a lembranca do ceu cinzento que, la fora, ameaca constantemente desabar em catadupas de agua. E percebemos que serao momentos de descompressao como este que nos irao ajudar a domar este aguerrido "tigre" asiatico. [PMM]

Vietname: o tigre da Asia

A decisao de voarmos pela Vietnam Airlines em detrimento da pouco auspiciosa Lao Air nao evita que sejamos apresentados a um aviao que parece demasiado pequeno. A aeronave eh perfeitamente suficiente para uma viagem tao curta (pouco mais de 1 hora), mas os ultimos voos que efectuamos deixaram a impressao de que os avioes sao todos grandes, gigantes, jumbos... Somos recebidos por hospedeiras de bordo vestidas com uma tunica vermelha, cor com que nos habituamos a conviver durante a travessia do Laos. O voo decorre sem sobressaltos ah excepcao do casal ocidental, sentado nos lugares ah nossa frente, que deu a toda a cabine uma demonstracao ao vivo de um par apaixonado (?), exibicionista e embriagado.
A entrada em solo vietnamita faz-se atraves de um aeroporto moderno que, espero, servirah de uma vez por todas para acabar com a ideia de que estes paises mais "exoticos" sao todos subdesenvolvidos. Os efeitos da India, concluo, demoram demasiado tempo a esvair-se. Passado o controlo do passaporte no qual a AV fica algum tempo retida por nao ter um destino/hotel concreto escrito na folha de entrada (eu tambem nao tinha e nao mo pediram), admiro a ordem do aeroporto enquanto espero que as mochilas aparecam no tapete rolante. Por essa altura ja um rapaz se acercou da AV para lhe mostrar discretamente um folheto de hotel. Exactamente o mesmo alojamento que tinhamos declinado numa abordagem feita ainda no aeroporto do Laos. O certo eh que este marketing inter-nacoes da bastante jeito. Aceitamos ir ver o hotel proposto e somos transportados para a cidade num carro confortavel, por um preco inferior ao que pagariamos se utilizassemos os meios de transporte locais. O servico VIP prossegue com o quarto que nos eh apresentado. TV, casa de banho, cama, quarto, servidos em doses gigantes. Praticamente uma suite -- com frigorifico recheado de aguas, cervejas e colas -- tendo em conta os standards a que estamos habituados.
"Nem tudo o que reluz eh ouro", "o barato sai caro" e por ai fora devem estar a dizer. E com razao. O regresso aos tempos aguerridos do Norte da India inicia-se com o valor pedido pelo quarto, superior ao que nos tinha sido indicado pelos "agentes" em qualquer dos aeroportos. Levamos a nossa avante mas mal descemos para ir jantar somos apanhados por uma senhora que comeca a disparar excursoes e bilhetes e viagens por todos os poros. Quando conseguimos escapar ja vamos com a certeza de que a nossa estada ira ser complicada... Mas talvez nao tanto como atravessar uma simples rua. Aqui no Vietname as motos sao ainda em maior numero do que na Tailandia. E nao param - nem sequer abrandam! - para deixar os peoes passar. A solucao, aprendida a custo e a medo, eh simplesmente comecar a atravessar, num passo lento mas decidido, e nao ceder ah tentacao de parar a meio do caminho, sejam la quantos forem os veiculos de duas rodas que se aproximem ameacadoramente. Simplesmente olhamos determinados para os condutores e confiamos que estes ases da estrada orientarao as respectivas rotas em conformidade com todos os movimentos que entram nesta dificil equacao.
Poderia bem ter sido em vao esta aprendizagem rapida de como atravessar uma rua em Hanoi se, regressados ao quarto, a AV nao reparasse que as garrafas de agua, embora de diferentes marcas, tinham selos iguais. Uma inspeccao pormenorizada revela que todas as garrafas estavam abertas e que os selos eram, portanto, falsos. A ingestao daquela agua, certamente da torneira, poderia causar-nos problemas de saude. O sonho da suite desmorona-se por completo. Ainda por cima, a grande TV apenas conseguia sintonizar um unico canal... Percebemos que, neste Vietname, voltaremos a precisar dos sentidos em estado de alerta. Antes de apagarmos a luz para descansar de um dia cansativo ja tomaramos a decisao de nos levantarmos cedo para procurar novo pouso. [PMM]

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Vientiane: entre o sublime e o surreal

No primeiro dia de 2006 comprometemos o nosso orcamento semanal e aprendemos uma licao: o dia 1 de Janeiro nao eh o melhor para viajar. Chegamos a Vientiane -- capital do Laos -- e todas as guesthouses estao cheias. Os quartos que nos mostram sao escuros e bafientos e nos achamos que neste dia festivo merecemos melhor. Para isso, temos que gastar mais do que previsto em alojamento. Optamos por um local cheio de cor e madeiras escuras, televisao (com canal de desporto para deleite do PM) e casa-de-banho com azulejos de vidro. Um verdadeiro luxo depois da viagem que fizemos apertados num suposto VIP bus, partilhado com tres simpaticos brasileiros de S. Paulo.
No dia seguinte a festa continua em Vientiane. Eh feriado nacional e algumas pessoas comemoram nas ruas o Ano Novo. Ah porta das casas comem, ouvem musica e bebem cerveja. Quando passamos desejam-nos felicidades com sorrisos rasgados de quem esta realmente a divertir-se. A cidade esta deserta como Lisboa aos domingos, mas deixa transparecer uma vitalidade de adolescente que comeca a querer libertar-se dos pais. O consumo comeca a despontar e os precos praticados sao muito elevados. Os restaurantes esforcam-se por imitar os franceses, nao so no nome mas tambem na quantidade infima de comida que servem.
Os templos de Vientiane sao lindissimos, mas o Pha That Luang eh o mais importante monumento nacional, gracas ah impressionante stupa dourada de 45 metros, que serve de motivo a dezenas de postais ilustrados e de fundo a fotografias de familia. Eh impossivel ficar indiferente ao belo, assim encontrado no meio de um ceu azul sublime, sobretudo depois de nos termos deparado com o estranho Arco do Triunfo ca do sitio -- uma grande estrutura inacabada, ainda por rebocar e pintar, construida com cimento oferecido pelos EUA, em 1969, para a instalacao de um novo aeroporto na cidade. Oficialmente designado Patuxai, o monumento destina-se a homenagear os soldados que morreram nas guerras pre-revolucionarias.
A bizarria nao fica por aqui. A cerca de 24 Km de Vientiane descobrimos o Xieng Khuan, tambem conhecido por Buddha Park. Uma consideravel extensao de terreno adornada com centenas de esculturas de deuses hindus e budas reclinados, deitados ou em posicao meditativa. Passeamos por ali debaixo de um calor torrido e, nao sabemos se eh fraqueza ou outra coisa, mas parece que aqueles olhos todos nos perseguem sem descanso. Pelo sim pelo nao, deixo flores nas maos de uns quantos, depois de ter entrado na surreal boca de inferno que nos recebe ah entrada do parque concebido pelo artista-espiritual Luang Phu Boon Lua.
Tal como no resto do mundo, tambem no Laos os jornais fazem retrospectivas e balancos nos ultimos dias de Dezembro. Gracas aos periodicos em ingles (atrasados, mas sempre sao melhor que nada) que conseguimos encontrar na Joma (a patisserie onde todas as manhas perdemos a cabeca e aliviamos os bolsos), fico a saber que apenas em 2005 um medico lao conseguiu realizar, com sucesso, a operacao ao coracao de uma mulher de 24 anos e de um miudo de quatro. Os meios usados e que permitiram a proeza foram todos disponibilizados pelo Luxemburgo.
Eh com esta noticia que volto a lembrar-me que o Laos eh um dos paises que integra a lista dos menos desenvolvidos do mundo. Talvez o Governo atinja a meta que persegue e em 2020 esteja na lista oposta. A avaliar pela quantidade de homens ocidentais que encontramos a passearem com mulheres asiaticas percebemos os receios de uma ou outra pessoa com quem falamos: que o Laos se transforme noutra Tailandia. Ate porque este eh o modelo mais copiado por estes lados. Os apertados jeans comecam, paulatinamente, a substituir as tradiconais saias compridas com barra bordada e as motas ja dominam o transito sem piedade. [AV]

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Vang Vieng: 'countdown' radical

Depois de experimentarmos os autocarros do Laos nao queremos outra coisa. A viagem para Vang Vieng faz-se num veiculo estranhamente em boas condicoes, mas que num apice enche ate nao poder mais. Os banquinhos de plastico ja estao a postos e permitem-me conviver de perto com as unhas grandes (muito comuns tambem no sudeste asiatico) dos dois senhores que ombreiam comigo durante as sete horas de viagem. Apesar do desconforto geral (as curvas no abismo sucedem-se outra vez), os passageiros contam anedotas uns aos outros e um deles comeca a tocar uma especie de gaita, deixando toda a gente bem-disposta, a cantarolar e a bater o pe.
O frio da montanha entra pelas janelas que eles insistem em manter escancaradas e nos fazemos a viagem embrulhados nos nossos casacos e lencos. Numa parte do caminho o nevoeiro atravessa-se ah nossa frente e deixamos de ver curvas, montanhas, ou o que quer que seja.

O mundo eh pequeno -- ja toda a gente sabe disso, bla-bla-bla -- mas nesta etapa da viagem parece-nos ainda mais infimo. De tempos a tempos cruzamo-nos com pessoas que atravessaram a fronteira connosco ou ate que conhecemos no curso de culinaria que fizemos em Chiang Mai. Os ingleses Dick e Jane sao um caso desses. Estiveram no slowboat e tambem no autocarro para Phonsavan, mas so hoje, numa das paragens a caminho de Vang Vieng, temos oportunidade de falar com eles. Ha uma empatia imediata entre nos. Apesar da diferenca de idades, cada um de nos parece sentir necessidade de ficar ali a conversar mais um bocadinho. Em menos de cinco minutos percebemos que pensamos a vida da mesma maneira e em menos de tres trocam-se confidencias. Eu tenho a alma aconchegada por aqueles pais emprestados que encontro. O PM tem um sorriso genuino estampado no rosto.

O autocarro para em Vang Vieng para nos deixar sair. Parece que chegamos a uma cidade fantasma. Ha po no ar e uma pista de aterragem, deixada pelos norte-americanos. A cidade eh composta por uma rua principal e duas ou tres perpendiculares. Tudo parece estar por acabar. As estradas estao por fazer, ha buracos por todo o lado e a construcao dos edificios foi interrompida a meio. A unica coisa que parece funcionar bem eh o turismo, atraido por uma paisagem deslumbrante. Por detras das casas feias e da poeira que se levanta de cada vez que uma mota passa ha um cenario magnifico. O rio eh calminho e claro; nas margens ha toldos de colmo que dao sombra a estrados de madeira onde podemos passar horas infinitas a ler, a ouvir o marulhar das aguas, a seguir os movimentos de uma libelinha ou a fazermos a meditacao que nunca conseguimos fazer em Alges por causa do barulho do cao que vive no andar de baixo.
Pensamos alugar bicicletas para explorar cavernas, equacionamos fazer caminhadas ou andar de caiaque, mas nada nos consegue arrancar desta paz preguicosa. O 'tubing' foi mesmo a coisa mais radical que conseguimos fazer. Na companhia do Dick descemos o rio Nam Xong, enfiados numa camara-de-ar de pneu de camiao. Num curso de agua quase sem corrente, somos obrigados a dar aos bracos e aos pes para avancarmos e nao adormecermos. A pasmaceira so eh interrompida pelos rapazes que nos querem vender Beerlao ao longo do percurso
(e opium, para quem precise de relaxar ainda mais).
Como nao podia deixar de ser, fizemos a contagem para 2006 com essa bebida ubiqua na mao (Beerlao, mas preta) e com os nossos novos amigos ao lado. Vang Vieng eh famosa pela vida nocturna, mas nesta noite vimos apenas um timido fogo-de-artificio e ouvimos um karaoke distorcido. Estranhamos a inexistencia de festarola mas aproveitamos para conhecer melhor este casal que decidiu gastar o que lhe resta (dinheiro e anos de vida util) a viajar por ai. So uns dias mais tarde, quando chegamos a Hanoi, alguem nos diz que a passagem de ano em Vang Vieng foi de arromba mas... a uns bons metros de distancia do local onde estavamos entretidos na conversa com uma mulher que passou anos a chefiar a cantina de uma escola e um oleiro que se tornou enfermeiro numa instituicao psiquiatrica. [AV]

Phonsavan: marcas de guerra

No Laos somos obrigados a abrandar o ritmo. Um pequeno-almoco pode demorar 40 minutos a ser servido e a velocidade de um autocarro publico nao ultrapassa os 20 Km/h. Apesar de alguns guias desaconselharem este meio de transporte para as nove horas de viagem que separam Luang Prabang de Phonsavan, decidimos dar o beneficio da duvida e la fomos nos. Chegamos cedo ah estacao e minutos depois alguem encaminha-nos para uma especie de autocarro indiano mas com janelas e bancos que ja foram estofados. O veiculo poe-se em movimento, chocalha por todos os lados abanando os locais, obrigados a partilhar o seu transporte com alguns ocidentais, mais os sacos de uns e as mochilas de outros. O tejadilho vai apinhado de motas, sacas e outros volumes. A estrada comeca a serpentear por montanhas e vales, num alcatrao inesperado mas mesmo assim estreito. As curvas sinuosas e apertadas mostram-nos um abismo de vegetacao verde e provocam o vomito a muitos passageiros (o PM engoliu um Viabom para impedir as queixas do estomago). Parecemos pudins a abanar la dentro e quase a cair para cima uns dos outros. Tal nao eh dificil porque muito depois de a lotacao estar esgotada continuaram a deixar entrar passageiros, rapidamente acomodados em banquinhos de plastico espalhados ao longo de todo o corredor do autocarro. Durante o caminho paramos diversas vezes - ou porque o motorista detecta um problema mecanico ou porque alguem precisa de ir atras dos arbustos. Nestas ocasioes aproveitamos para demorar os sentidos na paisagem, nas nuvens que ornamentam cumes como nos desenhos infantis, ou nas casas que o nosso imaginario reserva para as aldeias tradicionais, construidas em cima de estacas de madeira e com telhados de colmo. As pessoas vivem ah beira da estrada indiferentes a quem passa. As maes catam os filhos, raparigas tomam banho em soutien, grupos de miudos jogam ah bola.
Chegamos a Phonsavan no dia 27 de Dezembro. Poucos minutos sao suficientes para identificar as diferencas em relacao a Luang Prabang. Phonsavan eh apenas uma cidadezinha construida em torno de uma estrada. Portanto, sem o selo da UNESCO. Restaurantes e guesthouses de um lado e doutro. Tudo a viver ah custa do Plain of Jars - o motivo por que nos aqui viemos. Dezenas de jarros enormes de pedra estao dispostos nas montanhas da regiao. Ninguem sabe como foram ali parar nem com que objectivo foram construidos. Sabe-se apenas que existem ha mais de tres mil anos. Embora a imensidao dos gigantes recipientes nos tenha surpreendido, aquilo que mais nos impressionou foi descobrir as dezenas de crateras gigantes deixadas pelas bombas norte-americanas. O Laos guarda o triste recorde de ter sido um dos paises mais bombardeados de toda a historia. Entre 1964 e 1973 os EUA levaram a cabo cerca de 580 mil missoes aereas sobre o territorio, largando 2 milhoes de toneladas de bombas. Mas esta foi uma "guerra secreta", explica-nos o guia, pelo que ainda hoje os EUA recusam assumir quaisquer responsabilidades neste dominio. Nao ha registos da ocorrencia, eh a resposta oficial. Apesar disso, as crateras estao la. Assim como o orfanato que todos os dias acolhe criancas cujos pais morrem vitimas dos explosivos deixados no territorio. Estima-se que serao necessarios mais de 100 anos ate que o pais seja considerado totalmente seguro, mesmo com as Nacoes Unidas e outras organizacoes a desenvolverem um trabalho continuo de limpeza.
Eh com estas marcas de guerra que convivem diariamente os habitantes de Phonsavan. Mesmo assim, tentam esquecer o que la vai e ate fazem humor negro com os lagos que os EUA lhes ofereceram de presente (ou seja, as crateras).
Por causa dos transportes somos obrigados a ficar duas noites nesta terra triste e ainda temos oportunidade de descobrir dois clubes nocturnos na estrada principal. Num deles -- Soccer, assim se chamava --, iluminado a neons convidativos, vemos um casal de ocidentais entrar e sair logo de seguida. Ainda hoje nos questionamos sobre o que se estaria a passar la dentro, mas acreditamos que, no Laos ou noutro pais qualquer, a coisa nao deve ser muito diferente. [AV]