terça-feira, março 14, 2006

Mui Ne: dunas de decepcao

Apos seis horas de viagem, em que eh necessario recorrer a comprimidos anti-enjoo, chegamos a Mui Ne, localidade costeira famosa pelas dunas de areia branca. Para nao variar, rejeitamos o resort onde o autocarro Sinh termina a marcha (se a proposta de Dalat era cara, a esta faltam os adjectivos). O cansaco acumulado ja eh tanto que decidimos ficar no primeiro sitio que encontramos, apos andar umas centenas de metros com as mochilas as costas. O bungalow, simpatico, ja eh em conta mas conseguimos poupar uns dolares ao prescindir do ar condicionado instalado, processo concretizado pela entrega do comando do aparelho ah recepcionista.
A preparacao para a praia eh rapida. O horizonte de mar azul chama avidamente por nos mas ah medida que nos aproximamos percebemos que o conceito de praia nao eh o mesmo que existe em Portugal. Como areal privativo, o nosso resort propoe um paredao de cimento com cerca de dez de metros, cheio de areia. Ha espreguicadeiras de madeira sem almofadas e dois chapeus de sol, manifestamente insuficientes para a quantidade de hospedes. Descemos uns degraus para a praia verdadeira e deparamos com uma lingua estreira de areia pejada de lixo -- garrafas, lampadas, sacos plastico, pedacos de madeira, isqueiros... -- e uma agua nada convidativa a banhos. O sonho das praias vietnamitas esta decididamente comprometido.
Ainda assim, o corpo eh quem mais manda e nao conseguimos arranjar forcas para nova partida. Passamos dois dias a apanhar sol nas cadeiras do paredao -- sempre que as conseguimos apanhar -- e a adormecer com o barulho das ondas. A ausencia de Internet impede-nos de actualizar o blog como pretendido pelo que ocupamos o tempo a ler (termino a biografia do Marlon Brando) e escrever postais e diarios. Mas sem banhos de mar, e manietados pela ementa limitada do resort e falta de outras opcoes validas por perto, depressa surge a vontade de partir. E mesmo sem o descanso necessario, la estamos de novo num autocarro a caminho de Ho Chi Minh, etapa quase final desta imensa Republica Socialista do Vietname, casa de 82 milhoes de habitantes e uns quantos milhares de turistas. [PMM]

Dalat: a frescura dos "alpes" vietnamitas

Com a consciencia tranquila de termos cumprido em Nha Trang a homenagem ah patrona -- e patrocinadora e mentora -- desta viagem (iniciada pela "iluminacao" ocorrida numa igreja da baixa lisboeta), chegamos a Dalat decididos a descansar entre o ar puro das montanhas. Mas isso so depois de descobrirmos um quarto para deixar as malas, apos rejeitarmos a proposta tiranica do Cafe Sinh: um hotel do mesmo grupo, caro e longe dos restantes alojamentos da cidade. A ladeira que comecamos a subir parece nunca mais terminar. Ja extenuados descobrimos um hotel assinalado no livro-guia. Uma familia vietnamita recebe-nos com um ingles parco, chavenas de cha e sorrisos. Ficamos. E nao desistiremos do quarto nos dias seguintes, mesmo sendo sempre acordados por um galo por volta das 4 da manha. A simpatia gera destas fidelidades absurdas.
O percurso inicial por Dalat revela uma cidade com aspecto de alpes suicos e Paris provinciana. Um lago artificial rodeado de montanhas verdejantes, avenidas bordeadas de canteiros de flores e uma construcao metalica semelhante ah Torre Eyffel criam um ambiente kitsch e diferente do resto do Vietname. A custo encontramos uma galeria de arte excepcional: os quadros que representam paisagens, pessoas, motivos florais, nao sao pintados mas sim bordados em seda. Ao longe a diferenca eh imperceptivel e ao perto a mestria desta arte torna-se auto-evidente. No segundo andar percorremos a oficina onde trabalham as mulheres bordadeiras e o atelier em que artistas tracam os contornos dos desenhos a preencher. A visita guiada inclui um cha de cortesia e eh feita sem pressao para comprar uma destas obras que podem ascender a milhares de dolares e demoram cinco meses a terminar.
Dalat eh realmente uma cidade artistica, estranha, idiossincratica. Comprovamos isso tudo na paragem seguinte, um cafe que funciona na casa de um pintor, poeta, musico local. A conversa que temos com o artista e um escritor amigo ingles sera para recordar/relatar em conversas cara a cara, depois do nosso regresso. Ha momentos tao especiais que merecem ser partilhados dessa forma.
Ficamos convencidos que sera dificil suplantar o primeiro dia em Dalat pelo que recorremos ao auxilio de dois "easy riders". Na manha seguinte la estavam eles: nao o Peter Fonda e o Dennis Hopper mas sim dois guias motoqueiros vietnamitas. Ja com capacete posto e bem agarrados na parte traseira da mota, partimos para um dia cheio de descobertas (palacios reais de Verao, cascatas, mosteiros onde se ensina meditacao zen, estacoes ferroviarias de estilo frances, plantacoes de cafe, "casas loucas" arquitectadas com inspiracoes em Gaudi e Dali) e aventura (um erro de percepcao levou a que nos perdessemos no meio de uma floresta, na unica parte do trajecto feita a pe... mas la encontramos a estrada e esperamos pacientemente pelos nossos "cavaleiros andantes"). As visitas efectuadas ao nosso ritmo -- demoramos o tempo que queremos em cada sitio -- intercalam-se com deliciosos (e frescos!) passeios de mota para criar novo dia memoravel. Gostamos tanto dos "easy riders" que acabamos por jantar quase sempre num simpatico e modesto restaurante -- magnificos hamburgueres de tofu e batidos de morango -- que por acaso funciona como ponto de encontro entre turistas e guias-motoqueiros.
No dia seguinte, o ultimo passeio na cidade eh feito a pe, em redor do lago artificial (e sujo), e ao jardim das flores, parque onde encontramos estufas enormes das magnificas, e ao que parece celebres, orquideas de Dalat. Recuperados pelo ar das montanhas -- mas muito ensonados pelo cantar de galo -- subimos de novo para o autocarro Sinh. A viagem ate Mui Ne leva horas por estradas serpenteantes e eh um balsamo quando conseguimos adormecer. Sonhamos acordar ja no meio da praia, sob o sol do Vietname... [PMM]

domingo, março 12, 2006

Nha Trang: memorias do Apocalipse

A costeira Nha Trang era dos destinos mais ansiados do Vietname. Primeiro devido a um sonho longinquo, ainda no tempo de preparacao desta longa viagem, que envolvia as praias de Nha Trang e uma mae falecida -- os contornos do sonho estarao perdidos algures na memoria. Depois porque surgia como a oportunidade de descansar alguns dias do ritmo frenetico imprimido desde o inicio. Finalmente, porque sobre o Vietname paira sempre a sombra do meu filme favorito: Apocalypse Now.
Chegamos cedo a Nha Trang. Sao seis da manha e o autocarro descarrega os passageiros ensonados no hotel associado. Sem vontade, mantemos a intencao de nao aceitar este bombom (nao diremos envenenado, mas pelo menos mais caro do que o normal). Temos de esperar mais de meia-hora para que a nossa escolha abra portas (a recepcao estava vazia) e depois de cumpridos os primeiros rituais -- pousar mochilas, tomar banho, descansar uns minutos -- estamos prontos para a praia. Mas esta nao esta pronta para nos. A meteorologia da-nos ceu encoberto e aproveitamos a manha para rumar ao templo famoso pela estatua gigante do Buda sentado. Imponente, num branco imaculado, o Buda observa a cidade a partir do topo de uma colina, resplandecendo sob um ceu finalmente azul. Ainda assim, o tom cinza teima em nao nos largar (aqui no blog temos evitado mencionar os momentos maus, as discussoes, mas tenham a certeza que tambem ha disso por aqui... :-) ).
Iniciamos o regresso ao hotel com o intuito de restabelecer a harmonia numa sessao de praia e eh por puro acaso que damos de cara com a catedral de Nha Trang, bastiao cristao em terra distante. A AV diz que as coisas (os desvios da rota, os entraves, etc) costumam ter uma significado qualquer "oculto", mas nunca teve tanta razao como desta vez. Depois de ouvirmos canticos no interior da igreja, deparamos com uma "Maria Madalena" mesmo ao lado de um "Phaolo". Nomes assim inscritos numa parede de lapides que rodeia a catedral. O sonho torna-se realidade atraves deste encontro inesperado.
Depois do episodio, o resto da historia de Nha Trang faz ainda mais sentido. Nada deste destino combina connosco. A cidade, essencialmente feia, parece uma estancia balnear da Tailandia, com bares -- e bebidas e prostitutas -- orientados para os turistas sedentos de alcool e sexo. A praia esta impossivel -- vento, mar encrespado, areia suja, vendedores ambulantes de pulseiras, comidas e massagens a perturbarem permanentemente o descanso -- e as excursoes programadas as ilhas adjacentes para fazer snorkeling parecem impraticaveis. Ainda assim, eh necessario um "enviado" para percebermos que a nossa missao aqui esta cumprida: ao jantar conhecemos uma italiana que decidiu tirar um ano sabatico apos apagar as velas dos 40 anos e nos diz que se vai embora na manha seguinte. Nha Trang esta "off-season", sublinha. Concordamos. Naquele momento decidimos partir na manha seguinte e procurar refugio nas montanhas de Dalat.
Parto mais leve. De tarde coloquei-me nas maos de uma vietnamita. A intencao era que me cortasse o cabelo, com a costumeira maquina zero, mas a especialidade da rapariga nao sera certamente o corte de cabelo. Nunca estive tao perto de ficar sem escalpe. O alivio de sair daquelas maos assassinas transforma-se em ira ao chegar ao quarto. A AV constata que, alem de marcas vermelhas na cabeca, tenho partes ainda com cabelo. A solucao eh passar uma lamina pelo escalpe. Eh a primeira vez que rapo o cabelo assim e quando me vejo ao espelho recordo-me imediatamente do Coronel Kurtz. E lembro-me que ando a ler a biografia do Marlon Brando onde, a paginas tantas, ele refere que rapou o cabelo para as cenas do Apocalypse Now sem consultar o Francis Ford Coppola. Junto Nha Trang, sonho "maternal", filme favorito, cabelo rapado, catedral, e concluo que ha coincidencias mesmo muito coincidentes. [PMM]

sexta-feira, março 10, 2006

Hoi An: a evasao francesa

Se demorassemos tanto tempo a preparar as actividades para um destino quanto levamos a "postar" um novo episodio, ainda deviamos estar no aeroporto da Portela. Nao estamos, e a passagem por Hoi An tem inicio com uma viagem de autocarro cenica, ora junto ah costa, ora entre vales e montanhas verdejantes. As duas paragens dividem-se precisamente por um resort de praia -- onde um gelado nos custa um balurdio e a paisagem de areia-mar nos abre o apetite para tirar uns dias de "ferias" deste viajar constante -- e pelas Montanhas de Marmore, conjunto de cavernas com santuarios hindus e budistas que rejeitamos visitar a correr nos 15 minutos concedidos pelo motorista. Tempo suficiente para compreender o nome dado a este local, pejado de lojas de estatuas (fontes com golfinhos, Davids, Budas, Jesus Cristos, ninfas, bustos de Ho Chi Minh...) e objectos mais diminutos de marmore.
Hoi An eh outra historia. E leva algum tempo a preparar o percurso, ja depois de alojados num hotel gerido por mulheres, que de simpatia extrema passam a descontentamento por nao utilizarmos os prestimos de agencia de viagens que nos impingem. Compramos um inteligente bilhete turistico que permite ao viajante escolher os templos, casas de mercadores e saloes de congregacoes que prefere visitar e ocupamos a tarde com as nossas primeiras seleccoes (uma casa mercantil excepcionalmente recuperada e uma ponte japonesa coberta construida em 1593). Aos poucos, Hoi An revela-se uma cidade com um centro historico excepcional, composto por ruas estreias e edificios de dois andares -- alguns com varandins de madeira -- pintados em cores garridas. Este patrimonio mundial da UNESCO surge como um museu de um importante porto comercial do seculo XVII. Tal como em Hue, a influencia chinesa eh notoria, nos templos, no cha oferecido na casa mercantil visitada, nas lanternas vermelhas que alumiam as ruas. A sorte sorriu-nos e a nossa primeira noite na cidade eh passada entre a animacao do Festival da Lua Cheia, manifestacao que integra espectaculos de folclore e demonstracoes de artes marciais para entreter turistas, enquanto os habitantes se entregam aos seus rituais de queimar dinheiro de papel e oferecer comida aos espiritos dos antepassados. Por entre luzes vermelhas, as unicas acesas durante a noite, experimentamos a delicada gastronomia de Hoi An e os saborosos white rose (gambas enroladas numa massa fresca e cozinhadas ao vapor) tornam-se imediatamente um prato favorito. Ah influencia chinesa junta-se a requintada "joie de vivre" francesa.
Os dias seguintes confirmam que passear por esta cidade eh um regalo. Para a boca atraves do hotpot (marisco, molusco e peixe a cozer/marinar num "tacho quente" aquecido por uma brasa), da Patisserie Hoi An em que se servem delicias dignas de Paris, e pelo jantar divino no Cafe des Amis onde escolhemos um menu de seis especialidades locais confeccionadas por Mr. Kim, cozinheiro e cicerone de eleicao. E porque os olhos tambem comem, deliciamos as vistas pelas lojas de artesoes (alfaiates, sapateiros), souvenirs, e pelo mercado onde peixeiras posam para a fotografia antes de estenderem a mao a pedir dinheiro. Hoi An tem tanta vitalidade e encanto que ofusca completamente a excursao feita a My Son. Talvez por termos encontrado magnificas construcoes de estilo semelhante na India, as ruinas Cham datadas do seculo VII (e ruinas eh mesmo a palavra acertada), nao conseguem impressionar. O passeio de meio-dia a este patrimonio UNESCO, liderado por um guia extrovertido cheio de piadas decoradas e que comanda o batalhao de turistas ao som de "Camon Tiger!", acaba por ter um resultado adverso: comecamos a ficar fartos desta sucessao de excursoes que nos facilitam a vida (em termos logisticos e economicos pois esta tudo tratado e eh mais barato do que fazermos as mesmas coisas autonomamente) mas impoem ritmos e companhias que nem sempre agradam.
Nao nos cansamos eh dos Tiramisu e Black Forest da Patisserie. E la voltamos ah esplanada banhada de sol para passar as ultimas horas nesta cidade onde o ar cheira a Paris. Daqui a breves horas, o ar a circular sera diferente, mais aspero, agreste e condicionado. Pouco depois de acabar a ultima garfada, subimos para o autocarro do Cafe Sinh. Pela frente, nova viagem de 12 horas, noite dentro, ate Nha Trang. Desta vez levamos sandes na mochila... [PMM]