sexta-feira, novembro 25, 2005

Varanasi: Entre o ceu e o inferno

No dia 8 de Novembro chegamos a Varanasi e, como de costume, somos cercados por furiosos condutores de taxi e riquexo que nos agarram nos bracos e quase nos impedem a circulacao. Somos obrigados a ser rudes com quem, afinal, so esta a querer ganhar o seu, mas que chateia que se farta. Aqui no Norte da India estamos sempre ansiosos por chegar ao nosso destino, mas quando chegamos ja so pensamos em sair dali para fora. O grande problema eh mesmo esse: conseguir sair. Eh quase impossivel conseguir bilhetes de comboio para duas pessas de vespera. Desenhar as ligacoes que precisamos de fazer eh uma tarefa herculea e, quando queremos evoluir no subcontinente para Sul, bem que nos podemos preparar para esperar muito! Esperar nao so pelos comboios, mas tambem pela resolucao dos imbroglios em que por vezes nos metemos quando tentamos comprar bilhetes a empregados de hotel que nos garantem que "estao ali para ajudar o cliente" e que "tratam das deslocacoes num piscar de olhos". Vou poupar-vos ah descricao detalhada do que foi a nossa odisseia para conseguir sair de Varanasi com destino a Kajuraho e posterior ligacao a Goa. Digo-vos apenas que a nossa estadia na cidade santa prolongou-se ate ah noite de dia 13. Digo-vos tambem que uma fatia importante deste tempo nao foi passado a meditar ah beira do Ganges, mas a tentar resolver uma dificil equacao: gastamos uma pipa de massa em oito bilhetes (dois de aviao e seis de comboio) que nao nos interessam... pagamos tudo em dinheiro vivo (tal como nos filmes de gangsters carregamos molhos de notas de 100 rupias em sacos, ambos montados numa bicicleta-riquexo) e agora nao sabemos como sair desta alhada.
Mas saimos e o assunto acabou por se resolver.
Como acabamos por ficar mais tempo do que o inicialmente estimado, conseguimos viver a cidade um pouco mais profundamente. Instalados no Temple on Ganges - hotel com uma vista extraordinaria para a alma da cidade que corre no rio -, sentimo-nos em paz com os deuses todos do firmamento. A panoramica abrange uma das escadarias mais calmas do caudal - o Assi Ghat, aquele que nos serve de morada. Deitados na cama do nosso quarto, conseguimos abarcar a agua sagrada e ouvir os ruidos dos que vivem o seu rio.
Depois de varios dias dias em que nos deixamos andar um pouco sem rumo definido, no dia 12 levantamo-nos as cinco da manha para um passeio de barco no rio (o turistico "boat ride" que, desde a nossa chegada, nos tentavam impor a cada 5 metros de qualquer passeio inofensivo). A partida estava prevista para as 5h30, mas as 5h20 ja o remador nos esperava no local combinado. Nos, que iamos a pensar "mas quem eh que esta levantado a esta hora da manha?! Mas para que raio eh que nos marcaram a passeata tao cedo?", rapidamente percebemos a origem de todos os barulhos que nos acordavam, religiosamente, todos os dias as quatro da matina: ja estava tudo no rio a preparar mais um dia desta vida na terra.
Os ghats (escadarias) estavam ao rubro com uma quantidade inimaginavel e indescritivel de crentes que se sobrepunham em camadas para chegarem ao rio e ai ritualizarem as suas preces, lavarem as suas roupas e abandonarem os seus pecados desfeitos em espuma de sabao.
Ainda estah noite escura e o remador leva-nos nao muito longe da margem, perto o suficiente para apreciarmos os diferentes niveis de actividade que caracterizam cada um dos ghats. Com a escuridao as cores ganham uma tonalidade feerica, permitindo-nos sentir um pouco da espiritualidade derramada nos degraus, na lama, nas plataformas e nos barcos. Ha velas que flutuam em cestinhos de flores e ha tambem sacos de plastico nao biodegradaveis (mas esse conceito so agora comeca a ser divulgado nas grandes metropoles indianas) repletos de oferendas. Sao diversas as formas escolhidas por cada um para se relacionar com o divino. Religiao significa isso mesmo: religar, restabelecer a comunicacao com o alem.
Finalmente aportamos no Manikarnika Ghat, considerado o mais sagrado de todos e ultima paragem da peregrinacao feita por muitos hindus, denominada "panchathirthi". Sem que nos tivessem prevenido, somos ali largados e ah nossa espera esta um guia que nenhum de nos contratou. O remador faz-nos sinal para irmos e nao temos outra hipotese, porque comeca a afastar o barco da margem.
Explica-nos que trabalha ali no crematorio, bem como nos dois edificios que dominam o local e onde dezenas de pessoas aguardam pacientemente a sua morte. Quer mostrar-nos como tudo funciona e, em troca, so teremos que contribuir com uma pequena doacao destinada a ajudar as familias pobres que nao tem o dinheiro necessario para a totalidade da lenha precisa para queimar um corpo (e ah muitos que acabam por optar pelo crematorio electrico - mais barato - ou por deitar os restos nao cremados assim mesmo no rio: meio osso, meio carne, meio cinza).
De repente, e sem que tivessemos tempo para pestanejar ou reagir, estamos no centro das cremacoes. Aos nossos pes e quase a queimar-nos as solas dos sapatos, arde o corpo de uma mulher. O filho nao nos manda embora e ninguem parece incomodado com a nossa presenca. Olham-nos com a curiosidade com que olham sempre os ocidentais.
Mesmo sabendo que estou a assistir a um momento de grande alegria para qualquer hindu - eh esta cremacao, com consequente lancamento das cinzas do Ganges, que garante o Nirvana e o fim das reencarnacoes sucessivas - nao consigo apagar em segundos a cultura que me foi inculcada. No meu coracao a morte eh triste. E aquele foi um momento triste para mim. As cinzas daquela mulher, que nos nunca conhecemos, voaram e colaram-se as nossas roupas, ao nosso cabelo e ah nossa pele. O fogo toldou-me os olhos. O calor acordou magoas que eu trazia sem saber. E chorei uma morte que nao me pertencia.
No fim, pagamos as doacoes, os pedidos e as gratificacoes. Mesmo depois de o PM explicar que no ocidente nao eh com dinheiro que se limpa o Karma, o guia nao parece muito preocupado e ainda nos admoesta por estarmos a oferecer tao pouca lenha aos pobrezinhos. Depois lembramo-nos que estamos na India e eh assim que as coisas funcionam. Nao vale a pena revoltarmo-nos contra uma ordem que esta instalada, so porque a vemos na perspectiva ocidentalizada.
Ja refeitos da experiencia, caminhamos a pe pelas escadarias, agora que o sol ja vai bem alto. Espreitamos novamente a multidao do Dasashwamedh Ghat, passamos pelos homens que lavam furiosamente a roupa contra as pedras, e desviamos a cara daqueles que urinam pelos cantos ou provocam o vomito purificante. Admiramos as cores brilhantes dos saris que secam ao sol e so no dia seguinte sabemos, pela leitura do jornal, que tivemos o privilegio de assistir ao "Prabodhini Ekadashi", comemoracao hindu que tradicionalmente chama milhares de crentes ao Ganges. [AV]

Proxima paragem na nossa "peregrinacao": Cultura libidinosa em Kajuraho

(Nota: Agora ando a tentar resumir as nossas experiencias de viagem, mas mesmo asim mantenho todas as anotacoes exaustivas nos meus cadernos pessoais)

Notas de desporto: Gloria a Goa

E pronto. A chegada do duo pm_av ah India parece ter servido de talisma ah seleccao de Goa que, mais de 20 anos depois da ultima vitoria, acabou por vencer o mais importante campeonato inter-estadual do pais. Os rapazes que equipam de camisola amarela e azul venceram a final ja no prolongamento, altura em que marcaram dois golos para sentenciar o encontro, depois do empate a uma bola registado no final dos 90 minutos. Na ultima decada e meia, a seleccao goesa tinha perdido cinco finais e a malapata parecia estar para durar. Mas desta vez, a gloria nao fugiu aos jogadores de nomes de origem portuguesa. E o Herald la pode fazer uma manchete de primeira pagina sobre a gloriosa vitoria de Goa.

Notas de cinema: Bollywood, Bollywood, Bollywood

Num jornal, um actor de Bollywood era citado dizendo qualquer coisa do estilo: "Na India, o cinema eh como lavar os dentes de manha. Nao se consegue escapar disso." Alem do rapaz mostrar que tem cuidado com a higiene, a frase reflecte a omnipresenca do cinema - e das suas estrelas - no quotidiano indiano. Cartazes de cinema colados nas paredes das ruas, suplementos e rubricas de jornal cheios de fotos sugestivas e mexericos da industria, videoclips de musicas de filmes que passam incessantemente na TV, canais televisivos especificos de cinema, anuncios a todo o tipo de produtos que recorrem ah imagem dos actores mais famosos, novos e modernos multicomplexos que se juntam a salas tradicionais, revistas da especialidade bem estabelecidas no mercado, radios que passam hits musicais... de filmes. Homens que andam com fotografias dos seus actores preferidos na carteira. Rapazes e raparigas que imitam os seus idolos. E, tambem, ligacoes escuras e misteriosas ao mundo da Mafia (durante muitos anos foram os mafiosos que financiavam os filmes e aterrorizavam o mundo das estrelas/produtores/realizadores, com extorsoes de dinheiro e ate assassinios).

Ja se sabia que a India eh o maior produtor cinematografico do mundo, superando inclusivamente Hollywood, mas eh ao respirarmos esta dose macica de cinema que percebemos a verdadeira dimensao do fenomeno. Em certa medida, parece que regressamos ah epoca de ouro de Hollywood, onde o culto das estrelas foi levado ao estremo do glamour, da pose, da imagem.
Na India, o star system actual resume-se, acima de tudo, ao sexo. Praticamente todas as actrizes apresentam-se nos filmes, nas fotos, nos eventos publicos, nos cartazes, com vestes reduzidas (minisaias, tops colados ao corpo, ate ja vimos um caso em que uma moca aparecia em lingerie no cartaz promocional de um filme...). Quase todas tem corpos generosos, esculpidos minuciosamente (embora a AV ache que o padrao de beleza eh aqui algo diferente do que o do ocidente, prezando-se mulheres um pouco mais "cheias"). Muitas delas veem de concursos de beleza. Grande parte nao se importa de ser vista como um simbolo sexual. E o mesmo se passa com os actores mais novos, que nao perdem oportunidade de mostrar os musculos ou a pose de macho. O que espanta nesta febre pelo erotismo e sexo eh a relativa contradicao aos costumes e tradicoes sociais (as mulheres vestem saris, o que lhes deixa muito pouco ou nenhum corpo ah mostra) e o choque com outras regras cinematograficas instituidas (nao ha cenas de nus e ate os beijos na boca sao estritamente proibidos). Temos assim que eh possivel assistir a um filme repleto de mulheres e homens seminus, onde as coreografias das dancas (outro elemento imprescindivel num filme de Bollywood) sao do mais sexualmente explicito que se possa imaginar mas... beijos eh que nao.

Ha quem escreva que este periodo do cinema indiano eh um dos mais pobres (de ideias, de inovacoes, de filmes artisticos). Mas o publico parece nao se importar. Alias, a grande questao do momento resume-se ao seguinte: confirmar-se-a o rumor de que Aishwaria Rai vai aparecer pela primeira vez de biquini num dos seus proximos filmes? Er... ahem... pois... isso ate eu gostava de ver... [PMM]

Tres "curtas" a finalizar o post
1 - a AV colocou a alcunha de Al Pacino a um dos actores da velha guarda mais carismaticos ca do burgo. Chamam-lhe o Big B e tem uma barba completamente branca que contrasta com o cabelo escuro...
2 - compramos uma revista de cinema, a Filmfare, e a leitura tem-se revelado interessante. O grosso das paginas eh ocupado por pecas que interagem com as estrelas, desde as grandes entrevistas (a do numero que temos eh dedicada ah belissima Aishwarya Rai, que anda agora a fazer a sua entrada em Hollywood), a perguntas/inqueritos mais simples. As "meninas" ja se sabe, apresentam-se em poses e vestes sugestivas...
3 - em Panjin fomos ao cinema. Desconheciamos a existencia de um complexo novo e por isso fomos ao velhinho Ashok Cinema. O balcao onde ficamos estava praticamente vazio. Em baixo, na plateia, os risos prenunciavam a presenca de mais alguns espectadores, mas que nao chegavam para a sala estar composta. Era dia de estreia da comedia Garam Masala, com dois actores muito conceituados (um deles, o John Abraham eh uma especie de sex symbol) e o resto do cast cheio de meninas que competiam para mostrar a saia mais curta e o decote mais cavado. Aguentamos o filme inteiro - cerca de 2h30. A lingua era hindi. Nao havia legendas. A meio, percebemos que a nossa plateia tambem estava apinhada. De acaros. E tambem de umas pequenas baratinhas ou la que era. O filme? Serviu para confirmar a tendencia: humor algo ingenuo (muito slapstick a fazer lembrar os filmes do Jerry Lewis, situacoes previsiveis mas que ainda assim provocam risos no espectador) e corpos o mais ah mostra possivel. O pior foi que so teve tres ou quatro numeros musicais. Num deles, um dos actores "danca", alternamente, com as tres namoradas que procura manter simultaneamente (o cerne do filme sao precisamente as situacoes "comicas" decorrentes destes malabarismos). A imagem transmitida eh de que o rapaz eh mesmo um grande... dancarino, pois claro.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Notas de Imprensa: Sahara Times, The Times of India e Herald Goa

Desde que chegamos que os jornais tem sido uma presenca constante e inestimavel. Por um lado, auxiliam a passar as longas horas que por vezes temos de gastar ah espera do transporte para a etapa seguinte (eh pelos restantes posts ja devem ter percebido que podem ser varias e longas horas...). Mas talvez mais importante que isso eh a visao que nos permite ter da India, conhecer melhor os costumes e tradicoes, os casos de policia, as questoes politicas, as tensoes sociais. O semanario Sahara Times ja ganhou o posto de jornal preferido. Nao eh tao espesso como o Expresso, portanto mais facilmente transportavel, esta escrito num ingles escorreito e muito compreensivel para nos, e tem suplementos para varios gostos. Eh impossivel fazer uma descricao de todas as seccoes. Os destaques vao para o acompanhamento do mafioso que foi extraditado de Portugal (com artigos que contextualizaram bem o caso), o enorme espaco dedicado ao cricket (eh mesmo uma paixao neste pais), o suplemento Vanity Fair que relata as noticias e as coscuvilhices de Bollywood (assundo que vai merecer um post separado) e um especial sobre o dia das criancas que trazia muitas e interessantes reportagens sobre o que eh ser crianca da india, desde os meninos de familias de classe media e classe alta, ash criancas que vivem nos bairros de lata, se prostituem, ou trabalham de outras formas para sobreviverem. Ficou na memoria a historia de um rapaz de 12 anos, agora a viver sozinho em nova delhi (a familia eh de uma aldeia distante) que trabalha numa banca de chai (cha), faz turnos de 12 a 13 horas, e recebe um ordenado de 900 rupias (cerca de 18 euros) mensais mais 20 rupias diarias (menos de 50 centimos) para gastos varios. O que impressionava verdadeiramente era o discurso adulto, confiante, pragmatico, das criancas. Uns que gostavam de ser criancas, outros que gostavam de trabalhar, e todos a realcarem a relacao com as maes. O suplemento especial falava ainda de projectos fantasticos, como aquele que criou um banco gerido por criancas e que financia projectos de criancas que querem lancar os seus negocios e assim fugir da prostituicao ou da mendicidade.O Times of India, diario, tem servido para conhecer melhor as questoes sociais diarias do pais, desde as manifestacoes contra o corte do fluxo do Ganges em certas partes do Uttar Pradesh, ate aos casos de policia que em outras paragens podem nao ser noticia num jornal "serio" (filho que manda matar a mae, por exemplo). O jornal tem ainda alguns belissimos colunistas que falam sobre a emancipacao da mulher (parece que ha ai uma tenista indiana que professa o islamismo mas que nao se impede de conjugar uma imagem sexy com uma imagem tradicional), os avancos da nacao, os faitdivers do dia a dia.Finalmente, ja em Goa, compramos o Herald, tambem diario. E a maior surpresa de um jornal menos pujante do que o Times of India (eh muito localizado), eh a quase ausencia do "socialite" e as paginas gastas na seccao de desporto com o... futebol. Este eh mesmo um cantinho ah parte, onde o jogo dos 22 tipos a correrem atras da bola ainda parece fazer correr mais tinta do que os crickets britanicos. Senti-me quase em casa, maravilhado com a leitura da festa que os australianos fizeram ao serem apurados para o Mundial da Alemanha ou da magnifica passagem da seleccao de Goa (cuja maioria dos jogadores tem apelidos como Menezes, Albuquerque, e outros que tais) ah meia final num torneio inter-estadual. So por isso nao resisto a dar o resultado: Herald 1, Times of India, 0 (o Sahara eh de outro campeonato...). Golaco! [PMM]

Varanasi: A reconciliacao com Deus

Depois de abandonarmos o Sheela Hotel, no dia 7 de Novembro, pensei que o pior ja tinha passado e que Agra teria sido a pior etapa desta India tao dura e dificil. Depressa percebi que estava enganada. A viagem nocturna de comboio para Varanasi foi um pesadelo daqueles que nunca mais esquecerei, nem mesmo quando for velhinha e ja nao tiver dentes para contar a historia aos meus netos. Tudo comecou com o percurso feito de auto-riquexo ate ah estacao de comboios. Demoramos seguramente 40 minutos (o dobro do estimado pelo dono do hotel) a chegar ah Idgah Railway Station. Um caminho tortuoso por partes de Agra que ainda nao tinhamos visto, mas que so vieram completar o quadro negro. Em contraste com os hoteis caros (que tambem os ha por todo o lado, sob a forma de resorts de luxo), ficamos a cohecer as zonas de favela realmente degradadas. A mota larga um fumo muito espesso, negro, com um cheiro a gasolina que nos rasga as vias respiratorias deixando um rasto de dorzinha quando engolimos em seco. Enrolamos o capuz dos casacos ah volta da boca e do nariz e trocamos olhares no banco de tras, cravando as unhas nos ferros onde nos agarramos para nao cairmos com os balancos. Entratanto, as casas desaparecem das bermas e as luzes apagam-se. Estranho que uma estacao de comboios fique assim tao afastada da cidade e (vejam so se isto nao parece a cena de um filme) discretamente retiro o canivete suico do bolsinho da mochila. Tao discretamente que o PM nem da conta, ocupado que vai a tantar manter o equilibrio na mota. Nao me perguntem o que e que eu faria com a navalhinha. Hoje percebo o ridiculo da situacao, mas naquele momento eu estava mesmo decidida a fazer frente ao homem caso ele nos quisesse assaltar num descampado qualquer. Chegamos e o condutor tenta extorquir-nos 10 rupias alem do preco combinado inicialmente. Eu faco sinal ao PM para lhe dar o dinheiro e acabar com aquilo depressa. Mas nesta altura nos nem sonhavamos a noite que nos esperava. Olhamos ah nossa volta e deparamo-nos com uma estacao de meter medo, parecendo uma Ahmedabad (ja aqui descrita noutro post) mas mais pequena. As pessoas andrajosas la continuam amontoadas nos bancos e no chao. Distinguimos ascetas misturados com intocaveis. Animais e criancas atirados pelos cantos, nao sabemos se ah espera de comboio ou de um milagre que os leve dali para fora. Felizmente encontramos dois outros turistas que tambem pretendem seguir para Varanasi. Nenhum de nos percebe porque eh que com outras duas estacoes em Agra, logo tinham que nos mandar para aquela.
Depois de comprarmos o jornal (Sahara Times, por causa dos cadernos que publica ao domingo, mesmo sendo segunda-feira achamos que seria uma boa compra), dirigimo-nos ah nossa plataforma. Dois minutos depois de aliviarmos as costas do peso das mochilas, vemo-nos rodeados por um grupo de quatro ou cinco rapazes que nos olham fixamente. Nao percebemos bem a intencao, por isso, o PM vai respondendo as perguntas do costume (de onde somos, que lingua falamos, de onde vimos, para onde vamos... e por ai fora) com uma simpatia digna de registo. O unico que fala connosco (os outros nao percebem ingles, por isso, limitam-se a seguir todos os nossos movimentos com um olhar atento) revela uma cultura geral acima da media. Diz-nos que estuda ali perto, para vir a ser "professor de criancas". Comeco a sentir-me sufocada por aquele cerco cada vez mais apertado e o PM percebe. Por isso, aproveita para perguntar-lhe a razao de ser daquela curiosidade exacerbada em relacao a todos os estrangeiros. O rapaz explica-nos que os indianos sao mesmo assim, gostam de saber tudo sobre os outros povos. E ele eh exemplo disso, ja que disserta com relativa facilidade sobre temas europeus e consegue manter uma conversa sobre futebol, mesmo qando o seu desporto de eleicao (e o de todos os seus compatriotas) eh o criquete. Entretanto, desaparece-nos da frente numa corrida, porque o comboio que ele esperava esta de partida. Nao ha tempo para grandes despedidas, apenas para um imenso adeus, acenado ja da janela do comboio, acompanhado por um sorriso grande, de quem vai feliz da vida. Sentimo-nos bem naquele bocadinho, ao ve-lo orgulhoso dos amigos que acabou de fazer, e continuamos a ver a mao dele em adeus cada vez mais pequeninos.
A felicidade que sentimos estava quase, quase a derreter-se. Sao 22h e qualquer coisa. Chega o nosso comboio com destino a Varanasi. Mal encontramos a nossa carruagem, percebemos o calvario que estamos prestes a iniciar. Os nossos lugares estao ocupados e o PM resolve a situacao. Ate aqui tudo bem, nao fosse o ar carregado que se respirava e o vermelho ardente do cabelo e barba de um passageiro (eh moda por estes lados). A caruagem tem oito lugares e num dos lados segue um casal com duas criancas. Parecem ser de casta superior. Nao trocam palavras com ninguem e pouco comunicam entre si. As criancas tambem nao retribuem o sorriso que lhes dirijo (e que costuma funcionar com as criancas de todo o mundo) e eu pressinto que a coisa nao vai ser facil.
Este comboio partiu de Jodhpur, pelo que ja traz um cheiro e uma vivencia de viagem a meio. Ha pessoas descalcas por todo o lado e o chao ja mostra sinais de lixo que ninguem tenta sequer esconder debaixo do banco.
Nas estacoes seguintes entram mais pessoas (e uns quantos turistas, mas infelizmente nenhum fica ao pe de nos). Num rompante, seis mulheres e um homem entram na nossa carruagem. Cada um traz muitos sacos e trouxas e nos ficamos impossibilitados de nos mexermos e ate, durante uns longos segundos, de quase respirarmos. Acabam por se sentar todos ali mesmo e o PM resmunga, em portugues, que nao podemos fazer a viagem naquelas condicoes. Ha mulheres novas e velhas. Umas parecem-nos calmas e asseadas, mas outras tem um ar escorregadio. A dada altura, o homem que as acompanha tenta convencer-me a trocar de lugar com uma delas, que tem assento noutra carruagem mas nao quer ficar longe das outras. Eu agarro com forca o braco do PM, digo ao fulano que nao percebo nada daquilo que ele esta para ali a dizer e garanto (tambem em portugues, va-se la saber por que razao) que nao saio dali para lado nenhum.
A esta altura ja o barba ruiva tinha ido embora, mas percebemos que um outro senhor tem um bilhete com o mesmo lugar que um de nos. Temos que esperar pelo revisor paa resolver o imbroglio.
O vai-e-vem de sacos e mulheres de sari eh interminavel. Tiram panos e mantas e outros sacos de dentro de sacos, numa sucessao de matrioskas versao trouxa). Eu e o PM temos a certeza da eternidade que nos vao parecer as 12 horas de viagem que temos pela frente.
Passadas umas estacoes, estao 12 pessoas sentadas numa carruagem de oito. Eu e o PM desistimos da utopia de ler o jornal. Eh entao que o unico homem do grupo, sentado ah minha esquerda, comeca a tossir descontroladamente. Aquilo continua, continua e eu ja nao consigo desafiar mais a minha flexibilidade corporal para lhe virar as costas. Num tom quase didactico, o PM explica-me que estamos a caminho de Varanasi... e que o mais provavel eh que estejam ali muitos peregrinos em busca de cura. "Eles estao todos doentes", sussurou-me ao ouvido direito. Estava tudo explicado, so isso justificava aquela mistura de classes com habitos tao dispares.
Mas a ideia de que aquela gente estava carregadinha de doencas comeca a deixar-me muito desconfortavel. Sinto calores por todo o corpo. Enumero mentalmente todas as vacinas que apanhamos antes da viagem e recordo as indicacoes dos medicamentos que trazemos na bagagem. Mas mesmo assim nao fico descansada. Penso em despir o casaco para nao me sentir tao afogueada, mas logo reparo na quantidade de mosquitos que pairam na carruagem. Em vez de me despir, renovo a aplicacao de Previpic (repelente de insectos), o que deixa as outras mulheres meio intrigadas e com um sorrizinho meio trocista no canto da boca.
O PM percebe o meu incomodo e acaba por me convencer a ocupar o unico beliche que, naquela altura, temos a certeza que eh nosso (o do meio). Para isso, temos que desalojar o pessoal todo daquele lado da carruagem para montar as camas. Deito-me e sinto os olhares de toda a gente cravados em mim. Volto-lhes as costas e sinto-me adoecer. Estou mal disposta e quando me mexo parece que vou vomitar. Continuo com calor e comeca a doer-me a garganta.
Mais tarde chega o senhor dos bilhetes e resolve-se o problema dos lugares. Eu subo para o beliche de cima (para ficar mais resguardada) e o PM fica no meio. Para isso, tenho que enfrentar uma das minhas fobias desde que cheguei ah India: dormir num beliche de cima... mas hoje ja estou por tudo!
Ao pe de mim so tenho as ventoinhas cheias de dezenas de anos de po. E encostado ah minha cara, do outro lado da rede metalica que separa a carruagem, tenho um pe descalco e sujo pertencente ao senhor do lado.
Snto-me cada vez mais doente. A noite avanca e as luzes apagam-se. O meu vizinho do pe encardido ja ressona e as vezes lembra-me o meu vizinho de Alges que sofre de flatulencia. Sinto-me a perder as forcas para resistir ah India. Pela primeira vez, penso na hipotese de desistir. Das janelas escancaradas do comboio entram baforadas estonteates de fumo e po. Pergunto-me se conseguirei chegar a Varanasi. Entao, lembro-me que o nosso destino eh a cidade santa e (desculpem a incursao pelo dominio da espiritualidade mas... eu estava desesperada) penso no Deus da minha religiao. Recordo-me da oracao que a minha avo Lurdes me deu antes da viagem, vou busca-la ah carteira, e rezo-a com conviccao. Eu so queria que aquele castigo acabasse o mais depressa posivel. Bom, so metade da minha prece foi ouvida: em vez das 12 horas previstas, a viagem demorou 16 horas! Mas em contrapartida, consegui dormir na maior parte do percurso. Fiz um casulo branco (tao angelical, penso eu agora) com o meu lencol e adormeci profundamente... Five points to Jesus a caminho de Varanasi, eh o que eu vos posso dizer! Se estivessemos num campeoato inter-religioso, Jesus saia deste jogo dificil em clara vantagem, mesmo com a oposicao cerrada da dupla Vishnu e Shiva ;-)
Proximo capitulo: como AV e PM cheiraram - de perto, muito perto - a morte em Varanasi.

[AV]

domingo, novembro 13, 2005

Agra: O significado de "agreste"

No dia 5 de Novembro chegamos a Agra, no estado do Uttar Pradesh, norte da India. No caminho para o Sheela Hotel, percebo a derivacao da palavra agreste. So pode resulta de Agra e da agressividade de todos aqueles que nos tentam vender tudo, com muita, muita insistencia.
Vim para ca preparada para o pior. Na primeira vez que esteve na India, o PM ficou traumatizado com a passagem por Agra pelo que, antes de sair do comboio, eu enchi o peito de ar e mergulhei num desconhecido que receava.
O riquexo-bicicleta eh aqui muito vulgar, mas a principio custa-me muito sujeitar aqueles homens franzinos ao esforco de puxar dois latagoes ocidentais. Com o tempo, percebo que esta eh a minha forma de os ajudar. Eh o trabalho deles e eu sou uma cliente que paga os seus servicos. Pela primeira vez, vejo macacos ah solta na India. Estao por todo o lado. Mais tarde, em Varanasi, eu e o PM nao resistimos ah visao dos bichos e, mesmo ah beira do Ganges, prestamos uma homenagem ao Jose Cid: "Como o macaco gosta de banana, eu gosto de ti/ Escondi cacho debaixo da cama e comi, comi". [Nao liguem... isto do passarmos muito tempo sozinhos um com o outro da-nos para a maluqueira]
No segundo dia em Agra, levantamo-nos as 5h15 da manha para irmos visitar o Taj Mahal. Embora a atraccao turistica fique mesmo a 5 minutos do local onde estamos hospedados, queremos estar la a tempo de assistir ao nascer-do-sol. Entramos no complexo as 6h00 da manha, acompanhados por outros ocidentais que leram os mesmos guias que nos. Tambem entraram alguns indianos, mas em muito menor numero. Estes so comecaram a chegar em catadupa a partir das 10h00, enchendo o recinto por completo.
Durante toda a manha, uma nevoa sempre teimosa nao nos deixou encarar o Taj Mahal com o brilho que o caracteriza e que podemos constatar nos postais que nos querem impingir. Mas a beleza do edificio eh inegavel. Qualquer que seja a cambiante de luz do dia, detectamos particularidades distintas no marmore branco que, em formas redondas e femininas, representa o amor de um homem por uma mulher. A historia ate pode ser simples (o imperador que, inconsolavel porque lhe morreu a sua esposa preferida, decide homenagea-la com um edificio grandioso), mas representa a totalidade de uma paixao irrepetivel. Pois. 'No wife, no life!", ja dizia um condutor de riquexo ao PM depois de lhe ter perguntado se eu era mulher dele.
No ultimo dia em Agra, visitamos o Agra Fort. Mais uma vez, constatamos a quantidade de indianos que fazem turismo no seu proprio pais, orgulhosos dos seus monumentos. Mas eu (e todas as outras ocidentais) continuamos a ser atraccoes especiais nestas incursoes. Somos olhadas e miradas com atencao por todos. Homens e mulheres, todos revelam uma grande curiosidade em relacao a nos e nao tem qualquer pudor em revela-lo. No dia anterior, um pai pediu-me para posar com o filho numa fotografia, com o Taj Mahal ao fundo (e eu aceitei, sorrindo, com a mao no ombro do miudo simpatico). Hoje, a coisa assume proporcoes assustadoras. Depois de duas meninas terem ficado felizes da vida com a foto que aceitamos tirar com elas (tendo a mae incentivado uma delas a abracar-me com conviccao), sou solicitada por um grupo de miudos. Depois de dizer que sim a um, ja estava tramada... todos queriam a fotografia com a branquelas de cabelo curto. La impus a regra de "no hands!" apontando para o PM com a advertencia de "my husband"... mas enquanto permaneci no forte fui perseguida e assediada. Claro que o PM teve que assumir o seu ar de macho e dizer-lhes que "no is no", ponto final!
Depois de sairmos do Agra Fort demos uma volta pela zona, mas vimo-nos metidos numa alhada. Estavamos na zona antiga da cidade em busca de um templo, cuja cupula avistavamos, mas nao havia meio de encontrarmos o caminho ate la. Quanto mais procuravamos, mais nos embrenhavamos numa confusao de ruas estreitas, mercados, sujidade e muita gente. O sitio era asfixiante. Nao tinhamos certeza de alguma vez encontrar o tal templo, nem tinhamos certeza nenhuma de alguma vez conseguir sair deste emaranhado de bancas de fruta, fritos, tecidos, pele curtida... Em cada barraca ha um par de olhos escuros e um sorriso tingido de vermelho que nos convida - "hello" - e nos adivinha necessidades que nao temos.
Decidimos apanhar um auto-riquexo e sair dali para fora o mais depressa possivel. Alivio!
De seguida, vivemos outra aventura para encontrar a estacao de correios. Tudo o que no mapa parece perto, acaba por ficar a meia hora de caminho, por estradas iguais a todas aquelas que ja aqui descrevi diversas vezes (confusao... po...). Pergunto-me a razao que levara estes condutores a apitarem sem cessar... porque o efeito que produzem eh uma buzinadela continua que nao chama a atencao de ninguem para coisa nenhuma. Atravessamos um grande cruzamento com rotunda avaliando o tempo que uma carroca ou um automovel poderao levar ate chegarem perto de nos. Eh assim, e nao com passadeiras ou sinais luminosos, que se atravessam estradas na India.
O interior da estacao de correios lembra-nos as estacoes de comboio e isso nao me deixa descansada. De facto, tambem aqui se revela complicado comprar os selos adequados; descobrir cola para os envelopes (que nao colam com cuspo...) ou encontrar o balcao certo para entregar as cartas. Descobrimos que esta ultima tarefa pde ser feita no balcao 11. O senhor carimba as cartas com vigor e coloca-as ao lado do seu monitor (pois, de computador) e sorri-me com ar de quem diz: va descansada que as cartas hao-de chegar". Eu saio dali cheia de duvidas, mas rapidamente deixo de pensar nisso. A unica coisa que me ocupa a cabeca eh como retirar esta terra que tenho na lingua, nas amigdalas, no nariz e nos pulmoes. Olhamos ah roda e praticamos a aculturacao que se estuda em etnografia: bochechamos a boca com agua mineral (engarrafada e que transportamos sempre connosco) ali no meio da rua e cuspimos como os indianos. Alivio!
Nessa noite, seguimos viagem de comboio para Varanasi. O primeiro momento em que me senti fraquejar...[AV]



sábado, novembro 12, 2005

Partida 3

Homenagem ao melhor clube do mundo

Partida 2


Mas riem-se de queh?!
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lobossemestepes.
Mas riem-se de queh?! Saberiam que iam para a India!??

Partida 1

Agradecimentos:

1) ah fotografa oficial da partida (e tambem motorista e tambem apoiante incansavel), tia naninha.

2) aos que nos deram o imenso prazer de naquela manha podermos dar mais um abraco e beijo apertado (soube bem e ainda anda connosco...).

Lua-de-mel em Udaipur

Udaipur, uma das cidades que mais turistas chama ao estado do Rajastao, eh famosa pelo esplendido nascer do sol ah beira do Lago Pichhola. Aqui flutuam duas pequenas ilhas ocupadas na totalidade por um palacio de maraja cada uma. Chegamos na manha do dia 2 de Novembro. Depois de negociarmos um auto-riquexo (pequenas motas tipo Ape, cobertas, com espaco para o condutor e 2 passageiros, mas frequentemente apinhadas por 5, 6 ou 7 indianos), chegamos ao Gangaour Palace - o hotel onde conseguimos um quarto duplo com casa-de-banho e agua quente (o conceito de casa-de-banho aqui eh diferente do ocidental... noutro post hei-de explicar as diferencas). Mal assentamos arraiais, ponho-me a lavar roupa ah mao e estendo-o na corda que trouxemos connosco. O quarto transforma-se num acampamento de saltimbancos, mas gosto do cheiro da roupa lavada (com sabao Rim Extreme, uma especie de sabao azul e branco ca do sitio). O cheiro traz-me um bocadinho do conforto de casa.
A esta cidade afluem turistas de todo o mundo, mas os proprios indianos marcam uma presenca mais numerosa. Sobretudo os recem-casados, em busca de luas-de-mel calidas com paisagens adequadas a fotografias que se querem para a posteridade. Udaipur da-lhes tudo isso: da-lhes o lago e o sol ja referidos, mas da-lhes tambem o casario caiado de cores claras e murais pintados, com flores e arabescos. Estas mansoes, tipicas do Rajastao, chamam-se Havelis. Nos temos a sorte de o nosso Gangaour Palace ser um haveli com 250 anos de historias para contar. ha um patio interno e todos os quartos estao dispostos em torno desse patio com vista para o ceu de Udaipur.
Na cidade ha uma confusao continua, provocada por um movimento incessante de gente, motas, riquexos, bicicletas, carrocas, vendedores, pedintes, ocidentais vestidos ah indiano (mas com roupas que os proprios indianos nao vestem) e habitantes na sua lida habitual. Tudo a circular sem sentido nem nexo em pequenas estradas desenhadas em finas veias de alcatrao. Ha o tal po sempre no ar e uma neblina sobre o lago. Ha vacas pachorrentas e as vezes arrogantes (la porque sao sagradas...) e ha os bonequinhos que os locais fazem com os excrementos dessas mesmas vacas.
Pela primeira vez desde que pisei a India, sinto que estou a precisar de tempo para me ambientar e habituar ao sitio. As bermas ingremes, feitas valas em formas de esgoto, fazem-nos arriscar passadas no meio do transito. Eh desconcertante.
O Diwalli, que aqui se comemora de forma intensa e durante varios dias, faz-se sentir e ouvir sempre. As pequenas ruas estao engalanadas. O colorido eh desarmante e faz-nos esquecer tudo o resto. Encontramos altares em cada esquina, cada degrau, cada portao. As estradas estao cobertas de petalas de flores, amortecendo os passos descalcos das mulheres que, em procissao, visitam templos, fazem oferendas, colocam pequenos sinais vermelhos na testa. Elas vestem os seus melhores e mais ricos saris. Eles, trajando ah ocidental (sem cor nem brilho), ostentam com orgulho uma barba e cabelos ruivos de henne.
Nos aproveitamos Udaipur para comer bem. Reservamos mesa no hotel Taj Lake Palace (situado no palacio que ocupa uma das ilhas do lago) e decidimos que temos que comprar roupas na rua para nao fazermos ma figura naquele que eh um dos hoteis mais luxuosos de toda a India.
No quarto tomamos banho (gracas a Deus, trouxe a minha luva de esfoliacao... tao necessaria para arrancar este po do corpo) e vestimos as calcas novas e as tunicas. Vamos mais ou menos formosos e mais ou menos seguros... apanhamos o barco privativo do hotel e dai a nada ja estamos a ser recebidos com venias e salamaleques devidos a turistas endinheirados (e nao a estes tipos que so querem ir matar a barriga de miserias no buffet do hotel). Assistimos ao espectaculo de dancas e cantares locais (um suplicio la mais para o fim, com o rapaz do Rajastao a empilhar cantaros na cabeca ate comecar a suar em bica) e comemos ate fartar, repetindo as sobremesas umas 4 ou 5 vezes. As bebidas nao estavam incluidas... por isso, ficamo-nos por duas modestas cervejas Kingfisher (produzidas ca na terra).
Regressamos ao quarto que tem flores pintadas nas paredes brancas (eh o optimismo e a cerveja que me fazem ver branco no encardido). Nao sabemos bem se estamos preparados para o que ai vem: Agra. [AV]

quinta-feira, novembro 10, 2005

Mumbai - Ahmedabad - Udaipur (ou a saga dos comboios)

No dia 1 de Novembro (feriado nacional tambem aqui), partimos as 13h40 com destino a Udaipur com transbordo em Ahmedabad. Iniciamos aqui a nossa experiencia com os famosos caminhos-de-ferro indianos. Famosos porque abrangem uma complexidade impar. Cobrem praticamente todo o territorio e constituem o meio de transporte mais utilizado pelos indianos nas suas deslocacoes.
Mesmo o PM (rapaz experiente nestas coisas de consultar horarios de comboio) ve-se grego para decifrar o Trains at a Glance - manual com 267 paginas, editado pela Indian Railways e indispensavel para o preenchimento do formulario necessario na aquisicao de qualquer bilhete.
Durante a viagem, rapidamente percebemos que os indianos gostam muito de andar de comboio. E sentem-se nas carruagens como em suas casas. Em todo o percurso comem sem parar (comida que trazem de casa em caixas de aluminio e ainda a que compram aos muitos vendedores que circulam no proprio comboio); conversam uns com os outros; passeiam entre lugares, trocam de assentos, esticam os pes descalcos nos bancos da frente (e, as vezes, entre as pernas do PM...).
Nesta viagem vamos acompanhados por um casal de avos e dois netos pequenos. No caminho, o mais novo (com 10 meses, informou-me a avo) fez muitos xi-xis para cima de toda a gente (nos pensamos que escapamos, mas nao temos a certeza). A avo fez questao de o alimentar de 10 em 10 minutos (durante horas a fio) e ate improvisou uma cama de baloico - no meio de nos, eh verdade, eh possivel! - para o petiz dormir a sesta. A nossa volta percebemos (e nas viagens que fazemos mais tarde confirmamos) que as mulheres carregam tudo o que se possa imaginar em varios sacos, malas e trouxas.
As viagens parecem-nos sempre interminaveis. Mas apenas nos revelamos sinais de cansaco e ansiedade. Para todos eles, aquilo eh uma festa. Em cada estacao entram sempre umas dezenas de pessoas que, mesmo com bilhetes comprado, nao tem lugar sentado. Acomodam-se como podem, no chao ou onde calha.
O ambiente vai ficando carregado, e mais barulhento, e o cheiro predominante eh intenso mas indecifravel. Cola-se ah nossa roupa, pele e cabelo.
O caos instala-se definitivamente ah medida que nos aproximamos do fim, ou quando anoitece e as atencoes centram-se todas no interior das carruagens. Ha muito barulho, com o comboio sempre a silvar, as gentes a falarem alto e as criancas a chorarem.
Anoitece e percebemos melhor o significado do Diwalli que se comemora: em todas as localidades por onde passamos, lamparinas acesas e luzes electricas clamam por bons augurios, muita sorte e saude. Pequenos pontos de luz nos alpendres das casas, mesmo naquelas (a maioria) em que a pobreza eh visivel. As pessoas comemoram nas ruas, com o fogo de artifico a repetir-se de terra em terra, durante toda a noite.
Chegamos a Ahmedabad por volta das 22h00. A primeira sensacao que me assaltra eh a necessidade urgente de sair daqui para fora. Nunca imaginei local tao feio como este. As gentes parecem personagens de um filme biblico. Andrajosas e insondaveis. Pedintes, vendedores e condutores de riquexos chamam por nos, agarram-nos e querem agarra-nos nas mochilas. Um suplicio que nos faz detestar Ahmedabad.
As 23h05 partimos para Udaipur, onde devemos chegar por volta das 8h00 da manha. Eh a vez de descobrir os comboios na versao sleeper. Cada carruagem tem entre seis a oito lugares convertiveis erm cama (na forma de beliche) e ha tambem um ritual associado. As pessoas trazem de casa mantas, almofadas, roupas de la e gorros para usar durante a noite. Protegem-se nao so do frio que se faz sentir, mas sobretudo do po que entra por todo o lado e se nos entranha no nariz e entope os pulmoes.
Nos nao temos manta, por isso, vestimos os nossos casacos de fato-de treino, tapamo-nos com o nosso lencol, e tentamos dormir ate chegarmos ao destino. [AV]

[Continua: Udaipur-Agra-Varanasi]

Lisboa - Londres - Mumbai

30-31 de Outubro
Por ser repetente na India, o PM delegou-me uma tarefa que, na sua opiniao, eh impossivel: encontrar palavras para traduzir esta imensidao. Porque eh de imensidao que falamos, de facto. Aqui tudo eh grande, tudo eh muito, tudo eh demasiado. As cores, os cheiros, as pessoas, a religiao, a beleza, os sons, a pobreza, o caos, a porcaria. Tudo forma um todo. E eh a infima parte do todo que eu conseguir tocar, que tentarei desconstruir para depois tecer com palavras.

De Lisboa viajamos para Londres, onde chegamos por volta das 14h00. A ligacao para Mumbai esta marcada para as 21h35, pelo que percorremos o nosso terminal do aeroporto de Heathrow varias vezes de uma ponta a outra. aqui aprendo duas licoes que poderao ser uteis para o resto da viagem: 1) Nos aeroportos faz muito frio (por isso, eh conveniente levar o polar e procurar zonas comerciais onde o neon nos aquece); 2) Nunca aceitar pulverizacoes de perfume masculino oferecidas pelas meninas das promocoes das perfumarias (eu queria levar um cheiro ocidental para a India e acabei enjoada).
Quando nos encaminhamos para a nossa porta de embarque eh facil perceber que o destino eh a India. Quase toda a gente ah nossa volta eh indiana, muitos falam hindi e o aeroporto adquire um tom meio decadente. A bordo cheira a caril, ha refeicoes indianas, opcoes vegetarianas e passam filmes de Bollywood.
Chegamos a Mumbai por volta das 11h00 locais (dia 31/10). A primeira vez que respiro na India imagino que aquilo que eu sinto deve ser parecido com a primeira inspiracao de um recem-nascido. O ar que engulo eh quente, denso e cheira a tropicos (ou aquilo a que eu sempre pensei que deveriam cheirar os tropicos): mistura acre de terra e verde cheirada dentro de uma estufa de fetos.
Depois das extensas burocracias, necessarias para entrar no pais, mesmo para quem traz visto valido, apanhamos um taxi pre-pago com destino ah estacao de comboios.
O transito eh caotico e, no caminho, damo-nos conta de uma cidade que eh a replica exacta do taxi em que circulamos: degradada, desengoncada, capaz de ruir a qualquer momento. Na berma da auto-estrada correm esgotos a ceu aberto, mas ha gente que nos sorri e acena e ha quem, indiferente ao caos que o circunda, se vire para o lado na sesta que parece dormir ha uma vida inteira.
Nas fachadas dos predios veem-se anuncios a telemoveis, empresas de telecomunicacao e centros comerciais.
Somos obrigados a pernoitar em Mumbai (nao temos ligacao no proprio dia para Udaipur) e ficamos hospedados no Salvation Army (um quarto aceitavel mas uma comida capaz de desafiar qualquer imunidade que as vacinas nos conferiram antes da viagem).
A noite, apercebemo-nos que ha um festejo a decorrer na cidade. So mais tarde ficamos a saber que comemoram a vespera do Diwalli (assinalado este ano no dia 1 de Novembro). ESta data marca o periodo festivo dos hindus e o inicio do ano novo. Ah semelhanca do que fazem os ocidentais no Natal, tambem eles iluminam as casas, comem doces especificos, decoram as ruas e vestem roupas novas.
Vaguear em Mumbai eh como olhar, alternadamente, para a frente e verso de um postal ilustrado. Pitoresco e degradante. Belo e angustiante. Confuso e silencioso. Mais tarde, voltaremos ca e teremos oportunidade de sentir melhor aquela que eh a maior cidade da India, com cerca de 14 milhoes de habitantes. Eh daqui que deveremos partir, no dia 12 de Dezembro, para Bangkok. [AV]

Preambulo

Pela primeira vez desde que iniciamos esta viagem (no dia 30 de Outubro) temos, finalmente, vagar para concretizar a intencao de aqui relatar momentos e vivencias. Eh em Varanasi que o fazemos. A cidade mais santa de toda a India permite-nos parar para respirar fundo e tentar resumir estes primeiros dias.
Como devem imaginar, apenas 24 horas num pais culturalmente tao diferente do nosso dariam para escrever 24 posts extensos e ricos em pormenores coloridos. Debatemo-nos entao com a duvida: fazer imperfeito e sem acentuacao (uma dificuldade para ambos, perfeccionistas assumidos) ou simplesmente nao o fazer e esquecer o blog. Optamos pela primeira. Achamos que, mesmo faltando tanto do que vivemos, valera a pena partilhar um minimo que seja com todos aqueles que ai nos acompanham.
Nos posts seguintes faremos um balanco do itinerario percorrido ate agora, com a intencao de, futuramente, actualizarmos o blog a par e passo no decorrer da viagem.
Por enquanto, nao sera possivel colocar fotos. O upload eh excessivamente demorado para estas bandas nao tao largas quanto isso.. Se conseguirmos fazer chegar a terras lusas uns CDs com algumas imagens, entao, talvez possam ver, a cores, os locais por onde vao passando os lobos AV e PM.