sexta-feira, novembro 25, 2005

Varanasi: Entre o ceu e o inferno

No dia 8 de Novembro chegamos a Varanasi e, como de costume, somos cercados por furiosos condutores de taxi e riquexo que nos agarram nos bracos e quase nos impedem a circulacao. Somos obrigados a ser rudes com quem, afinal, so esta a querer ganhar o seu, mas que chateia que se farta. Aqui no Norte da India estamos sempre ansiosos por chegar ao nosso destino, mas quando chegamos ja so pensamos em sair dali para fora. O grande problema eh mesmo esse: conseguir sair. Eh quase impossivel conseguir bilhetes de comboio para duas pessas de vespera. Desenhar as ligacoes que precisamos de fazer eh uma tarefa herculea e, quando queremos evoluir no subcontinente para Sul, bem que nos podemos preparar para esperar muito! Esperar nao so pelos comboios, mas tambem pela resolucao dos imbroglios em que por vezes nos metemos quando tentamos comprar bilhetes a empregados de hotel que nos garantem que "estao ali para ajudar o cliente" e que "tratam das deslocacoes num piscar de olhos". Vou poupar-vos ah descricao detalhada do que foi a nossa odisseia para conseguir sair de Varanasi com destino a Kajuraho e posterior ligacao a Goa. Digo-vos apenas que a nossa estadia na cidade santa prolongou-se ate ah noite de dia 13. Digo-vos tambem que uma fatia importante deste tempo nao foi passado a meditar ah beira do Ganges, mas a tentar resolver uma dificil equacao: gastamos uma pipa de massa em oito bilhetes (dois de aviao e seis de comboio) que nao nos interessam... pagamos tudo em dinheiro vivo (tal como nos filmes de gangsters carregamos molhos de notas de 100 rupias em sacos, ambos montados numa bicicleta-riquexo) e agora nao sabemos como sair desta alhada.
Mas saimos e o assunto acabou por se resolver.
Como acabamos por ficar mais tempo do que o inicialmente estimado, conseguimos viver a cidade um pouco mais profundamente. Instalados no Temple on Ganges - hotel com uma vista extraordinaria para a alma da cidade que corre no rio -, sentimo-nos em paz com os deuses todos do firmamento. A panoramica abrange uma das escadarias mais calmas do caudal - o Assi Ghat, aquele que nos serve de morada. Deitados na cama do nosso quarto, conseguimos abarcar a agua sagrada e ouvir os ruidos dos que vivem o seu rio.
Depois de varios dias dias em que nos deixamos andar um pouco sem rumo definido, no dia 12 levantamo-nos as cinco da manha para um passeio de barco no rio (o turistico "boat ride" que, desde a nossa chegada, nos tentavam impor a cada 5 metros de qualquer passeio inofensivo). A partida estava prevista para as 5h30, mas as 5h20 ja o remador nos esperava no local combinado. Nos, que iamos a pensar "mas quem eh que esta levantado a esta hora da manha?! Mas para que raio eh que nos marcaram a passeata tao cedo?", rapidamente percebemos a origem de todos os barulhos que nos acordavam, religiosamente, todos os dias as quatro da matina: ja estava tudo no rio a preparar mais um dia desta vida na terra.
Os ghats (escadarias) estavam ao rubro com uma quantidade inimaginavel e indescritivel de crentes que se sobrepunham em camadas para chegarem ao rio e ai ritualizarem as suas preces, lavarem as suas roupas e abandonarem os seus pecados desfeitos em espuma de sabao.
Ainda estah noite escura e o remador leva-nos nao muito longe da margem, perto o suficiente para apreciarmos os diferentes niveis de actividade que caracterizam cada um dos ghats. Com a escuridao as cores ganham uma tonalidade feerica, permitindo-nos sentir um pouco da espiritualidade derramada nos degraus, na lama, nas plataformas e nos barcos. Ha velas que flutuam em cestinhos de flores e ha tambem sacos de plastico nao biodegradaveis (mas esse conceito so agora comeca a ser divulgado nas grandes metropoles indianas) repletos de oferendas. Sao diversas as formas escolhidas por cada um para se relacionar com o divino. Religiao significa isso mesmo: religar, restabelecer a comunicacao com o alem.
Finalmente aportamos no Manikarnika Ghat, considerado o mais sagrado de todos e ultima paragem da peregrinacao feita por muitos hindus, denominada "panchathirthi". Sem que nos tivessem prevenido, somos ali largados e ah nossa espera esta um guia que nenhum de nos contratou. O remador faz-nos sinal para irmos e nao temos outra hipotese, porque comeca a afastar o barco da margem.
Explica-nos que trabalha ali no crematorio, bem como nos dois edificios que dominam o local e onde dezenas de pessoas aguardam pacientemente a sua morte. Quer mostrar-nos como tudo funciona e, em troca, so teremos que contribuir com uma pequena doacao destinada a ajudar as familias pobres que nao tem o dinheiro necessario para a totalidade da lenha precisa para queimar um corpo (e ah muitos que acabam por optar pelo crematorio electrico - mais barato - ou por deitar os restos nao cremados assim mesmo no rio: meio osso, meio carne, meio cinza).
De repente, e sem que tivessemos tempo para pestanejar ou reagir, estamos no centro das cremacoes. Aos nossos pes e quase a queimar-nos as solas dos sapatos, arde o corpo de uma mulher. O filho nao nos manda embora e ninguem parece incomodado com a nossa presenca. Olham-nos com a curiosidade com que olham sempre os ocidentais.
Mesmo sabendo que estou a assistir a um momento de grande alegria para qualquer hindu - eh esta cremacao, com consequente lancamento das cinzas do Ganges, que garante o Nirvana e o fim das reencarnacoes sucessivas - nao consigo apagar em segundos a cultura que me foi inculcada. No meu coracao a morte eh triste. E aquele foi um momento triste para mim. As cinzas daquela mulher, que nos nunca conhecemos, voaram e colaram-se as nossas roupas, ao nosso cabelo e ah nossa pele. O fogo toldou-me os olhos. O calor acordou magoas que eu trazia sem saber. E chorei uma morte que nao me pertencia.
No fim, pagamos as doacoes, os pedidos e as gratificacoes. Mesmo depois de o PM explicar que no ocidente nao eh com dinheiro que se limpa o Karma, o guia nao parece muito preocupado e ainda nos admoesta por estarmos a oferecer tao pouca lenha aos pobrezinhos. Depois lembramo-nos que estamos na India e eh assim que as coisas funcionam. Nao vale a pena revoltarmo-nos contra uma ordem que esta instalada, so porque a vemos na perspectiva ocidentalizada.
Ja refeitos da experiencia, caminhamos a pe pelas escadarias, agora que o sol ja vai bem alto. Espreitamos novamente a multidao do Dasashwamedh Ghat, passamos pelos homens que lavam furiosamente a roupa contra as pedras, e desviamos a cara daqueles que urinam pelos cantos ou provocam o vomito purificante. Admiramos as cores brilhantes dos saris que secam ao sol e so no dia seguinte sabemos, pela leitura do jornal, que tivemos o privilegio de assistir ao "Prabodhini Ekadashi", comemoracao hindu que tradicionalmente chama milhares de crentes ao Ganges. [AV]

Proxima paragem na nossa "peregrinacao": Cultura libidinosa em Kajuraho

(Nota: Agora ando a tentar resumir as nossas experiencias de viagem, mas mesmo asim mantenho todas as anotacoes exaustivas nos meus cadernos pessoais)

6 Comments:

At 10:05 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Olá,é o Alex ! Parabéns pela descrição da viagem, está espectacular e ainda bem que tudo corre pelo melhor, mesmo com uns sustos pelo meio....e como hoje é dia 30 de Novembro parabéns também por mais um aniversário, que tenhas um dia muito feliz. Muitos beijinhos. Alex

 
At 11:07 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Olá
Dia 30/Nov :) Muitos Parabéns Andreia.
Espero que tenhas um dia muito feliz e que esteja tudo bem convosco. Nós cá vamos acompanhando a vossa viagem e peripécias.

Bjinhos
Rita

 
At 11:19 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Estou a adorar os relatos.

Muitos Parabéns Amiga.

Bjos
Angela e Francisco

 
At 6:26 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Olá Andreia, parabéns!
É hoje, não é?
Um resto de boa viagem, e divirtam-se.
Continua a fazer-nos viajar!
Do amigo ainda Tuga,
Pedro Oliveira

 
At 10:30 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Caramba... parabéns Andreia! Aí já não vai chegar a tempo, mas... garanto-te que aqui ainda é 30 de Novembro!

 
At 7:10 da manhã, Blogger av pm said...

Diamond, Pedro, Almiro, Angela, Rita, Xana e Alexandre...
Obrigada pelas vossas mensagens. Que bom que eh estar aqui em varkala (ainda India, com um mar furioso aqui mesmo ao pe dos meus ouvidos) e ler o que me escreveram. Obrigada por estarem ai. Beijos grandes e muitos abracos apertadinhos.
P.S. Prometo que vou continuar a relatar a viagem... so nao sei quando.

 

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