segunda-feira, dezembro 26, 2005

Sukhothai: Regresso ao futuro entre ruinas do passado

Quando H.G. Wells escreveu "A Maquina do Tempo" esqueceu-se de olhar para a Tailandia. Nao sao precisas maquinas complicadas para andar no tempo. Vejo-me ao espelho, na primeira manha que acordamos na Tailandia, e sinto-me bem. Envelheci mais de 500 anos mas quase nao se nota. Estamos a 13 de Dezembro de... 2548, ano do Senhor que nestas paragens dah pelo nome de Buda. Revejo a face reflectida e sinto-me quase tao novo como Sua Majestade, o rei da Tailandia, na pujanca dos seus 78 anos (eh o monarca do mundo que reina ah mais tempo, tendo subido ao trono com 18 anos). A presenca de Bhumibol Adulyadej supera a do proprio Buda. Sua Majestade nao eh omnipresente. Eh bem presente. As notas da moeda local tem todas a efigie do monarca e manda o codigo que nao as amarrotemos ou deixemos cair... Os calendarios prescindem de imagens de meninas em poses sensuais para dar primazia ao retrato de Bhumibol. E sao incontaveis os posters e cartazes de um rei vicoso, jovial, que se avistam em placares pelas ruas e estradas do pais. Sao autenticos altares onde se pratica o culto a um homem que os tailandeses veem como uma figura paternal. Uma especie de conciliador das querelas sociais e politicas, que esta sempre atento para evitar os excessos.
Dificilmente haveria melhor local do que Sukhothai para tambem nos comecarmos a venerar a monarquia. A poucos quilometros da nova cidade jazem as ruinas da antiga capital da primeira nacao Thai. Em 1238, escorracados os Khmers do local, ergue-se uma cidade monumental ah beira do rio Yom. Os vestigios arqueologicos desta epoca de excepcao, considerada o periodo de ouro da Tailandia, estao concentrados no magnifico parque historico da velha Sukhothai. Eh de bicicleta que percorremos as estradas do recinto, sob a sombra das arvores que povoam as bermas. Os relvados estao bem tratados e a tonalidade verde que exala frescura contrasta com os canteiros de flores coloridas. Ha lagos com nenufares e flores de lotus. E, claro, ruinas de templos, ratificadas pela UNESCO como patrimonio mundial. A serenidade sentida na noite anterior acaba reforcada pelo passeio e damos por nos a mimetizar o sorriso placido, contido e contagiante que vislumbramos nas varias estatuas de Buda encontradas ao longo do dia. Apos a profusao (e confusao) de divindades indianas, eh um alivio sermos sempre recebidos pela imagem de Buda. Mas tal como o ditado preferido aqui do local ("Same, same... but different"), cada estatua parece possuir uma verdade exclusiva. A descoberta eh, deste modo, sempre diferente apesar das igualdades.
A hora do almoco traz mais uma achado: a gastronomia local. Basta um pad thai - o prato tipico do pais - com a sua mistura de noodles, vegetais, amendoim e ovo para uma rendicao (quase) incondicional. A comida tailandesa apela a todos os sentidos: eh visualmente apetecivel, cheira bem, sabe ainda melhor. E parece preparada com higiene, mesmo quando se trata de "restaurantes" ah beira da estrada. Recomposto o estomago, passamos o resto da tarde a viajar de templo em templo, aproveitando cada minuto em cima do selim para relembrar os tempos de infancia e juventude, enquanto assobiamos o tema da mitica serie Verano Azul. A felicidade prolonga-se pela viagem de songthaew (autocarro colectivo composto por uma caixa aberta que contem dois bancos de madeira corridos, um frente ao outro) que nos leva de volta ah nova Sukhothai, feita em ritmo lento e com paragens aleatorias para deixar entrar e sair passageiros.

O ar fresco na cara sabe tao bem que no dia seguinte resolvemos repetir a dose, desta vez no parque historico de Si Satchanalai. Ja de bicicleta, encontramos um conjunto de ruinas em pior estado de conservacao e que nao permitem vislumbrar a imponencia de outrora. O passeio volta a valer a pena pelas pedaladas. Estamos de tal forma empolgados que nos propomos a fazer mais 10 km para ver um museu dedicado aos fornos de Sangkhalok, local onde na antiguidade se produziam pecas de olaria exportadas para varias partes do mundo. O pequeno museu, apesar da ausencia de legendas em ingles, esta extraordinariamente bem arranjado. Mas eh o percurso que nos leva ao local que compensa o esforco. A passagem por uma zona mais rural e menos turistica permite apreciar calmamente a arquitectura das casas de madeira, muitas delas construidas em cima de estacas, enquanto respondemos aos "hellos!" genuinos que nos sao enviados pelas pessoas ah beira da estrada.
Esta eh a grande arma do povo tailandes. Uma simpatia genuina e desarmante. Este espirito acaba por nos contagiar de tal forma que ficamos com problemas de consciencia sobre o local que escolhemos para almocar. Sao tres os restaurantes que partilham o mesmo telheiro e todos com senhoras simpaticas a receberem-nos. Terminada a refeicao, mitigamos um pouco do mal estar sobre a nossa seleccao inicial (passamos o tempo todo a dizer "coitada da senhora do lado, nao tem la ninguem!", mudando para o restaurante a seguir ao nosso a fim de beber um Expresso. O qual, apesar de anunciado num letreiro em caracteres generosos, tem de ir ser requisitado pela nossa nova anfitria ao estabelecimento de onde acabaramos de sair... Os sorrisos, generalizados por todos os intervenientes nesta rabula sobre "boas intencoes", transformam-se em puro riso.
O regresso de autocarro ah velha Sukhothai eh feito por entre a alegria efusiva dos jovens acabados de sair da escola, com as suas fardas compostas por camisa branca e calcao/saia azul, que invadem o autocarro. Jantamos na nossa guesthouse com a sensacao da primeira etapa tailandesa estar cumprida. A viagem pode prosseguir na manha seguinte. Antes disso, a AV resolve presentear os varios rapazes que olhavam distraidamente o filme a passar na TV da guesthouse com um quadro (in)esperado. Na intencao de telefonar ah tia em horas portuguesas decentes, a chamada teve de ser feita por volta das 23 horas locais. Para cumprir esta vontade de sobrinha, eh necessario chamar a empregada que melhor fala ingles, a qual ja se encontra deitada. Dito e feito. Momentos depois, surge pela porta a lindissima rapariga, coberta por um mini roupao esvoacante de seda. E nunca tantos homens suspiraram para que um telefonema feminino durasse, se possivel, uma eternidade. Estava apresentada a mulher tailandesa, que tera um papel ainda mais determinante no proximo destino: Chiang Mai. [PMM]

Tailandia: Goodbye India, sawatdii Tailandia!

Por entre receios de gripe das aves, preconceitos europeus sobre a Tailandia (como o pais resumir-se a uma estancia balnear e/ou sexual), e uma quase inexplicavel nostalgia de abandonar a India, embarcamos no aviao com destino a Bangkok. Voamos na Cathay Pacific, considerada em 2005 como uma das melhores companhias de aviacao mas certamente nao pela comida que servem em classe turistica. Decepcionante, ah excepcao do croissant fresquinho...
Mal o aviao comeca a baixar surgem os primeiros sinais de que o nosso proximo destino eh capaz de ser um pouco diferente da India onde passamos as ultimas seis semanas: enquanto a aeronave aterra, joga-se golfe num campo situado mesmo ao lado da pista. Este insolito dah lugar a um espanto quase infantil ao verificarmos a grandeza do aeroporto onde aterramos, cheio de longos corredores e uma quantidade assombrosa de postos para verificacao dos passaportes (onde julgo que nos tiraram uma fotografia as iris). Passada a primeira barreira deparamos com lojas dutyfree certificadas com ISOs 9001... Percebemos que ja nos tinhamos esquecido como os aeroportos podiam ser asseados, grandes, brilhantes, quase bonitos. E com papel higienico nas casas de banho.
Recolhidas as mochilas que mais pareciam filhotes de Alien por estarem embrulhadas num casulo de celofane (servico prestado no aeroporto de Mumbai em troca de umas largas rupias) dirigimo-nos para o proximo choque: onde estao os rickshaw-wallahs que nos tentam levar prontamente para o seu veiculo a "precos de saldo" e com promessas de terem a melhor guesthouse da cidade? Ah, aqui estao eles, ou melhor, elas, devidamente fardadas e identificadas. As "wallahs" daqui pertencem a cadeias internacionais de rent-a-car e procuram impingir limousines ate ao centro da cidade. Mas desistem ao primeiro "no, thank you" o que nos deixa livres para apanhar um taxi (onde foi preciso dizer tres vezes ao motorista para utilizar o taximetro...) e procurar cumprir o plano tracado no aviao: apanhar um autocarro para Suthokhai, cidade no centro da Tailandia, e deixar a visita a Bangkok para daqui a um mes e meio, altura em que teremos de regressar ah capital do pais para apanhar novo voo.
O percurso pela autoestrada que nos leva ao terminal dos autocarros eh surpreendente. Nesta via de piso impecavel circulam automoveis modernos, a velocidades moderadas e cumprindo as regras de transito. Decididamente, um mes e meio na India chega para esquecermos que existem locais com regras. E que estas podem ser cumpridas. Na estacao de autocarros temos o primeiro contacto mais intimo... ou melhor, contacto mais proximo, com a Tailandia. O terminal eh o mais ordenado possivel, com espaco adequado para inumeras carreiras para todos os pontos do pais. Nao ha lixo no chao, seja nos passeios ou nas ruas. Dentro do edificio principal sucedem-se bancas de comida e lojas de conveniencia (mais tarde constataremos que existe um 7-Eleven em quase cada esquina), onde os produtos frescos/embalados estao impecavelmente apresentados/arrumados. A casa de banho, paga, tem bons padroes de asseio (os urinois ate estavam numerados...). A zona de espera tem cadeiras, luxo raro na India onde o comum era as pessoas sentarem-se ou deitarem-se no chao e esperar longas horas pelo seu transporte. As pessoas que encontramos vestem-se de forma ocidental. Voltamos a ver calcas de ganga, mini-saias, blusas justas, tenis all-star. Um mundo totalmente diferente que nos manteve num estado continuo de profundo - e patetico! - espanto. O unico senao desta chegada ao Pais das Maravilhas reside no facto de praticamente nada estar escrito em ingles. Nem a Coca-Cola escapa. Os caracteres tailandeses, incompreensiveis para nos, ocupam toda a paisagem visual, aumentando a sensacao de estarmos num lugar distante e estranho.
A estranheza, ja se sabe, facilmente se entranha (tal como a bebida). E depois de uma viagem de autocarro de sete horas (numa camioneta com ar condicionado e bancos almofadados) por uma autoestrada quase sempre em linha recta onde nao houve ultrapassagens de vida ou de morte, chegamos menos cansados do que o habitual ao nosso destino, ja de noite. No terminal de Sukhothai somos recebidos por alguns condutores de tuk-tuk (o riquexo ca do sitio) que pedem valores exagerados para nos levar ah cidade ao mesmo tempo que nos mostram folhetos sobre esta ou aquela guesthouse. Dizemos a um deles que queremos experimentar primeiro uma determinada guesthouse (que ele afirma estar cheia), negociamos o preco do transporte e, para nossa surpresa novamente, ele acaba por aceitar o trato com um sorriso.
A guesthouse esta, de facto, cheia. O condutor ri-se e leva-nos ao sitio onde provavelmente tera a sua comissao. Enquanto a AV guarda as malas, sigo desconfiado o simpatico homem que me recebeu na guesthouse para verificar as condicoes do bungalow proposto. Saio do quarto a dizer Bendita Tailandia. Por um preco inferior a qualquer dos sitios em que ficamos na India temos direito a um bungalow de palhota e madeira, com cama grande e confortavel, WC ladrilhado e agua realmente quente. E tudo sem a "casa" abanar mal damos um passo...
Depois de jantarmos o ultimo bolinho de chocolate comprado no 7-Eleven, adormecemos com um sorriso nos labios e uma sensacao de seguranca para aquela que eh provavelmente a noite de sono mais calma e relaxante desde o inicio da viagem. Sawatdii Tailandia... sawatdii... saw... [PMM]

Mumbai - A cidade que surpreendeu duas vezes

Aquela que foi a nossa maior viagem de comboio na India (25 horas percorridas entre Mysore e Mumbai) foi tambem a mais asseptica. Porque iriamos estar tanto tempo enfiados numa carruagem, decidimos pagar um pouco mais e compramos bilhetes numa classe acima daquela em que viajamos sempre. Entre as diferencas notadas, a mais gritante eh a total ausencia de cheiros e sons. As janelas estao hermeticamente fechadas e o ar condicionado assegura uma temperatura um pouco abaixo daquilo a que entretanto nos habituamos. Recostados nos nossos lugares, olhamos pelos vidros mas sentimo-nos um bocadinho perdidos. Vemos mas nao ouvimos nerm cheiramos. Parece que em vez de olharmos a realidade assistimos a um documentario projectado nas janelas do comboio. La fora ninguem nos ve, pelo que tambem ninguem nos tenta vender fruta ou amendois. Nos corredores do comboio nao passam mendigos nem travestis (comuns nos comboios indianos, eh suposto dar-lhes dinheiro). Sabe-nos bem fazer a longa viagem nestas condicoes, mas nao nos arrependemos de todas as outras, as anteriores, que recordaremos para sempre com as suas particularidades.
Chegamos a Mumbai na hora prevista e conseguimos quarto no YWCA. A diaria aqui quase rebenta com o nosso orcamento, mas regalamo-nos naquele que foi o melhor quarto de toda a India. Com duas refeicoes incluidas e uma casa-de-banho virginal (a brancura das loicas ate faz doer os olhos), nem sequer pestanejamos.
Neste regresso a Mumbai damos conta da nossa absoluta rendicao ah cidade. Que maravilha de metropole! Nao sabemos o que eh que operou esta nossa mudanca de perspectiva: o conforto do alojamento ou o facto de termos passado um mes e meio no resto da India... a verdade eh que demos por nos completamente apaixonados pelo fervilhar das ruas; pelos edificios que de repente nos parecem muito semelhentes aos europeus; pelos semaforos que condicionam o transito; pelos jovens que se vestem como os ocidentais e andam abracados sem tabus.
Desta vez visitamos uma galeria de arte e deliciamo-nos com os trabalhos de quatro artistas indianos contemporaneos. O Museu Principe de Gales enche-nos as medidas (excelente audioguia) e o passeio ao final da tarde pela Marine Drive ate Chowpatty Beach mostra-nos uma baia lindissima com um por-do-sol memoravel. Tambem fomos ah famosa ilha de Elephanta (a uma hora de barco de Mumbai), mas demos o dinheiro por mal gasto: a ilha tem muitos mais macacos e caes sarnentos do que vestigios historicos.
No ultimo dia - em Mumbai e na India - assistimos a um espectaculo de musica classica indiana que, pelas suas particularidades, comecou as 6h15 da manha. Ao ar livre, mesmo ao lado do Gateway of India, vivemos um momento de absoluto deslumbramento e introspeccao, durante aquilo a que os organizadores chamaram uma "spiritual morning".
Na madrugada seguinte (12 de Dezembro) temos voo marcado para a Tailandia. No caminho para o aeroporto avistamos um poster de cinema gigante a anunciar o ultimo filme da nossa estrela de Bollywood favorita - o Amitabh Bachchan. Com um ar muito suspeito de quem sabe o que esta a dizer, o homem avisa-nos: "Go Bagkok"! O conjunto formado pelos oculos escuros e a gabardina preta a ondular ao vento nao nos deixam opcao e la seguimos viagem para Bangkok, que remedio! [AV]

Mysore: Sumptuosidade com cheiro a sandalo

Chegamos a Mysore na manha do dia 7 de Dezembro. Logo depois de arranjarmos um sitio para ficar, comecamos a explorar a cidade. Temos muito pouco tempo a perder, ja que no dia seguinte partimos para Mumbai, etapa final da viagem na India. Ainda antes de almoco ficamos verdadeiramente embasbacados com a sumptuosidade do Palacio do Maraja. A grandeza e a opulencia sao esmagadoras. Os corredores do palacio sao obrigatoriamente percorridos sem sapatos para perservar os marmores, os embutidos e as madeiras. As divisoes sucessivas deslumbram-nos com os seus vitrais, espelhos, cristais e azulejos. Nao falta sequer um lustre enorme proveniente da antiga Checoslovaquia. Todos os espacos transpiram arte, seja na forma de madeiras esculpidas ou tectos trabalhados.
Depois da riqueza desbragada, passamos ah humildade. Para nos punirmos da cobica e da luxuria, visitamos a Catedral de Santa Filomena. Esta eh uma das imagens mais incoerentes da cidade: uma igreja de traca verdadeiramente medieval (copia da Cateral de Colonia), rodeada de palmeiras, coqueiros e riquexos.
Depois de um pacato almoco no jardim do Hotel Ritz (que tambem o ha em Mysore, vejam so) seguimos ate as fabricas governamentais de seda e oleo de sandalo. A primeira ja tinha encerrado o periodo diario de visitas, pelo que espreitamos apenas a segunda. Na memoria ficou-nos o intenso cheiro da madeira de sandalo, ubiquo em toda a cidade.
Como num verdadeiro corta-mato, saimos a correr da fabrica e subimos (de riquexo, claro) Chamundi Hill, uma das colinas mais sagradas do Sul da India. A subida foi ingreme e a mota parecia querer ficar-se pelo caminho, como vimos acontecer a alguns carros. Mas la se aguentou e nos fomos respirar fundo as vistas que, segundo os guias, sao magnificas. Mas nos o que vimos foi uma neblina irritante que nem sequer nos deixou distinguir o Palacio do Maraja. Regressar ao hotel eh que foi complicado. Poucos condutores de riquexo falam ingles e a mimica nao resolve tudo.
Ah noite fomos recuperar folego ao Parklane Hotel. A musica ao vivo e a comida deliciosa - num jardim apinhado de backpackers e indianos com pinta de trabalharem em informatica - deixaram-nos optimistas para a viagem de 25 horas que nos esperava no dia seguinte.[AV]

A seguir: Temos mesmo que ir embora de Mumbai?

terça-feira, dezembro 20, 2005

Thanjavur - Um portugues imortalizado no templo

As 16h15 do dia 5 de Dezembro chegamos a Thanjavur. Durante a sua passagem pela India, os ingleses mudaram os nomes das localidades e ruas para toponimos que facilmente conseguissem pronunciar. Thanjavur passou a Tanjore e so recentemente voltou ah denominacao antiga. A rua do hotel onde ficamos hospedados - uma estrutura turistica com apoio governamental, onde ja tinhamos estado em Rameswaram - eh muito movimentada, caotica e baulhenta. Por todo o lado ha grandes armazens de comercio, sobretudo joalharias. Sao edificios imponentes muito ocidentais, com neons chamativos. O comercio "tradicional" convive bem com estas modernices e no chao encontramos diversos sapateiros e ferreiros, especialistas em arranjos de lanternas ou cadeados. Nao somos muito importunados. Sao poucos os turistas ocidentais que por aqui passam.
Na manha seguinte visitamos o Templo Brihadiswara, tambem patrimonio mundial da UNESCO. Este local sagrado integra uma estrutura enorme, que representa bem o poderio aqui alcancado pela dinastia Chola. O material predominante eh algo que nos parece terracota. No edificio principal encontramos um linga enorme. A entrada do complexo eh guardada por Nandi, o touro de Shiva, uma escultura com mais de 25 toneladas. Temos tempo ainda para visitar os Shivaganga Gardens (um parque que faz as delicias dos habitantes, talvez por reunir piscina, escorregas de agua e ate um camelo no mesmo local). Depois de almoco rumamos ao Royal Palace, mas depressa precebemos que os tempos da realeza ja la vao e hoje, o mal preservado edficio alberga uma escola.
Ao final da tarde seguimos para Mysore, em Karnataka. A viagem de comboio durou toda a noite, mas decorreu de forma muito tranquila. Na nossa carruagem seguiam dois senhores muito simpaticos e interessados em Portugal e nos portugueses. Ate ficamos a saber que numa das paredes laterais do templo de Thanjavur, la entre as centenas de esculturas, ha uma que representa um conterraneo nosso. So nao percebemos o que eh qu ele ali estava a fazer (mas haveremos de descobrir!).

sábado, dezembro 17, 2005

Rameswaram - Banho sagrado numa ilha paradisiaca

O dia 1 de Dezembro marca o ponto a partir do qual comecamos a imprimir ah viagem uma velocidade de cruzeiro. Nesta data, apanhamos um autocarro ate Allepey e daqui seguimos para Kollam, a bordo de um barquinho preguicoso que nos transporta por entre as veias de aguas calmas e doces do Kerala. Durante as sete horas de viagem assistimos as rotinas diarias de quem vive nas margens e aqui lava as roupas e as loicas das refeicoes, pesca o jantar, da banho aos filhos e ate mantem pequenos cubiculos forrados a palhota e assentes em estacas de madeira que nos pareceram ser latrinas com esgoto directo. A paisagem eh magnifica e os patos nadam em bandos enormes, indiferentes aos receios de gripes ou outras maleitas. Nos aproveitamos para dormir, ler e apenas estar ali. Ah hora de almoco, paramos num sitio a meio do caminho onde nos servem um thali em folha de bananeira. Enquanto empurramos o arroz com o chapati, sem a ajuda de garfos ou facas, conhecemos um casal de franceses que esta agora a terminar uma viagem semelhante ah que nos pretendemos fazer, iniciada ha cerca de 10 meses.
De Kollam seguimos para Madurai, ja no Estado de Tamil Nadu. Chegamos de manha cedinho, ainda os estabelecimentos estao fechados. Dirigimo-nos aos templos (motivo por que fazemos escala nesta cidade) e encontramos uma extraordinaria estrutura com 65 mil metros quadrados, decorada com mais de 30 mil pequenas estatuas coloridas, representando deuses. Os templos atraem cerca de 10 mil pessoas diariamente, mas nos vimos muito poucos ocidentais. Descalcos, percorremos o intrincado de ruas sujas interiores.
Nessa mesma manha, apanhamos um autocarro para Rameswaram. O mar azul da pequenina ilha com vista para o Sri Lanka cativa-nos logo ah chegada. Aqui, os nossos sentidos descansam, finalmente, e deixam-se entorpecer pela beleza muito pouco adulterada pelo homem.
Na madrugada de domingo, 4 de Dezembro, somos acordados por uma violenta tempestade. Lembramo-nos que Tamil Nadu tem estado, nesses dias, sob o efeito de fortes chuvadas inesperadas, deixando campos alagados e culturas destruidas. Mesmo assim, levantamo-nos cedo e vamos para o templo. Na praia junto ao hotel onde estamos alojados, encontramos dezenas de pessoas que ai, na Baia de Bengala, iniciam os seus rituais com um banho purficador. Nos nem sequer molhamos os pes na agua salgada. Estamos secos, mas isso nao dura muito tempo. O chao do templo esta alagado e ficamos com agua enlameada pelos tornezelos. Poucos minutos depois, e quase sem me dar conta do esta a acontecer, dou inicio a um longo ritual composto por 24 baldes de agua sagrada, que me sao deitados pela cabeca abaixo. Depois do primeiro banho (eu julgava que os nao-hindus so poderiam ser aspergidos com salpicos de agua), tentei desistir. Mas o guia nao admite essa hipotese e continua a chamar-me, de poco em poco, num ritmo de atleta. Durante todo o percurso pensei em mil coisas que hoje me dao vontade de rir. A minha maior preocupacao era adoecer... constipada, com uma alergia ou por beber agua contaminada. A meio deixei de pensar nisso. Afinal, se aquilo era sagrado nao me podia fazer mal! Felizmente, levava um impermeavel vestido (apenas por causa das chuvas da noite), mas que se revelou precioso... eh que eu nao levava sari como as outras todas mas uma blusa que ficou transparente depois de molhada, por cima de um soutien preto!
Nessa noite senti que o banho tinha, de facto, operado transformacoes em mim e no PM por arrasto. Dormimos como anjos num quarto repleto de melgas, formigas gigantes e uma familia de osgas, alem de outros insectos que nem sequer conhecemos, mas que ali passaram a noite connosco.
No dia seguinte partimos rumo a Thanjavur. A viagem de autocarro (sete horas) deixou-nos a adrenalina no maximo. Num dos solavancos, ouvimos um estrondo na parte de tras da camioneta e o revisor faz o tipico acenozinho de cabeca indiano (abanam a cabeca de um lado para o outro, como se quisessem dizer "mais ou menos", mas querem significar "sim". Ate o percebermos, eu e o PM andamos desrorientados). O saco enorme de uma das passageiras tombou e ha caranguejos espalhados por todo o lado. Cheira a peixe... estamos na India. [AV]

Proximo post: Thanjavur

Cochim: Aniversario entre as dancas Kathakali

Depois de Goa seguimos viagem para Cochim, no estado do Kerala, onde nos deixamos inebriar pelo forte cheiro a pimenta. Percebemos logo o encanto que esta terra tera exercido sobre portugueses, holandes e ingleses - todos eles aventureiros colonizadores destas paragens. Ha especiarias no ar, porque brotam dos quintais das casas bonitas que ladeiam as rua desafogadas. Chegamos no dia 29 de Novembro e estranhamos, pela segunda vez, que nao queiramos ir logo embora. Eh bom estar aqui, na Napier Homestay, a partilhar o dia-a-dia da familia que nos acolhe com um sorriso sincero e a tomar duches de agua quente, mesmo que la fora esteja um calor de bradar aos ceus. A familia eh mesmo uma familia: pais, filhas e avo. Todos abencoados por um Sagrado Coracao de Jesus pendurado ah entrada, porque sao cristaos, influencia de antepassados britanicos.
O termometro que a nossa amiga L. nos emprestou marca quase sempre 35 graus centigrados, mas mesmo assim encharcamo-nos em cafe com leite e torradas com manteiga no Vasco Cafe (em homenagem ao nosso Vasco da Gama, que ali ao lado tera passado os seus ultimos momentos na consoada de 1524). Eh assim, com o estomago ja reconciliado da fome passada no comboio (numa viagem de 16 horas, mas ainda assim imaculada, com revisores de calcas brancas e vincadas), que vamos descobrir um dos quadros mais perfeitos que a India nos reservou - as redes de pesca chinesas. Ao largo do Mar Arabico e mesmo ao pe dos cargueiros que passam, estao estas grandes estruturas de madeira, que mais parecem aranhas gigantes, sustentando redes de pesca. Conforme as mares estao ou nao de feicao, assim os pescadores as baixam ou levantam para recolher o pescado. Mais tarde, no passeio de sete horas que fazemos entre Allepey e Kollam, pelo meio de canais placidos de aguas verdes, voltamos a encontra-las.
Em terra vende-se o peixe acabado de pescar, sob a forma de "fast food" saudavel: "You buy, we cook!", explicam-nos em cartazes. Cheira a lota e a redes de pesca a serem consertadas a bordo de pequenas embarcacaoes. Sem percebermos a razao, constatamos a inexistencia de pedintes. Talvez porque o mar dah alimento que chegue para todos. Ou apenas porque os policias, fardados de camisa azul e calcas castanhas, patrulham a zona de tras para a frente.

E de repente, quase sem eu dar por isso, no dia seguinte (30/11) ja eu estava mais velha um ano... Vejam so como se pode comemorar um aniversario em Cochim:
00h07 - Por baixo do mosquiteiro cor-de-rosa, o PM acorda e da-me um beijo entaramelado de parabens
9h00 - Pequeno-almoco na Napier Homestay
9h30 - Massagem ayurvedica com uma indiana que nao fala ingles. Nua, fui esfregada, massajada e envolvida em oleos medicinais
10h15 - A indiana enrola-me num pano e leva-me para o duche onde me volta a esfregar, desta vez com sabonete e shampoo ayurvedico (parecia a minha mae a esfregar-me o 'surro' do pescoco quando eu era pequena)
10h30 - Regresso feliz e contente para a guesthouse
10h45 - A senhora Napier espera-me ah porta de casa, com um sorriso gigante, e da-me os parabens 10h50 - O PM canta-me os parabens com bolinho de chocolate, vela e ramo de flores
11h00 - A avo da familia da-me os parabens (e, mais tarde, outros desconhecidos da vizinhanca fazem o mesmo deixando-me profundamente feliz e comovida... ate a florista que vendeu as flores ao PM me ofereceu 'congratulations' meio timida)
12h00 - Visita ao Museu Indo-Portugues. Altura de constatar o excelente trabalho que a Fundacao Calouste Gulbenkian mantem por estes lados. O senhor dos bilhetes conta-nos a historia toda da passagem dos nossos antepassados por Cochim e, no fim, convence-me a comprar uma essencia de lirio, flor cultivada ali mesmo no jardim
13h00 - Sopa de tomate divinal no Keshi Art Cafe
14h30 - (9h00 em Portugal) Telefonema aos meus pais... eu nasci as 9h00 e a minha mae tem o costume de me telefonar todos os anos no minuto em que nos cortaram a relacao umbilical
17h00/20h30 - Longo, muito longo (mas extraordinario) espectaculo de danca Kathakali - um dos quatro tipos de danca classica indiana. O tradicional Kathakali foi e continua a ser executado nos dias festivos como parte dos rituais que tem lugar nos templos hindus. Actualmente, eh possivel assistir a versoes mais curtas destes espectaculos (os originais podem durar oito horas), onde ate nos deixam ver os actores a maquilharem-se de forma dramatica e colorida. As pinturas que utilizam, os gigantescos e impressionantes aderecos que colocam na cabeca e ainda as magnificas saias armadas que envergam, totalizam aquilo a que recorrem externamente para reforcar a representacao. O resto fica por conta da sua capacidade de expressao, traduzida unicamente por movimentos de olhos, trejeitos, gestos (sob a forma de 24 'mudras'), saltos ou posturas corporais. Tudo conjugado com percussao e canto.
20h45 - Jantar no Fort House hotel - excelente comida de Kerala, gastronomia famosa pela deliciosa combinacao de peixe e leite de coco. [AV]

Proxima etapa : 24 baldes de agua fria na cabeca em Rameswaram

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Agra, WC do quarto


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Viva a ferrugem!

Agra, Taj Mahal


Agra, Taj Mahal
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Agra, Taj Mahal


Agra, Taj Mahal
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Na penumbra do por-do-sol.

Agra, Taj Mahal


Agra, Taj Mahal
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Na penumbra da madrugada.

Agra, Taj Mahal


Agra, Taj Mahal
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Limpeza matinal de uma mesquita adjacente ao Taj.

Udaipur, City Palace


Udaipur, City Palace
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Udaipur, Lake Palace


Udaipur, Lake Palace
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Espectaculo de folclore, muito orientado para o turista americano ver, preferencialmente de copo de whisky na mao.

Udaipur, vista para o Lake Palace

Tambem nao ficamos alojados no Lake Palace... mas pelo menos jantamos la!

Mumbai, Taj Mahal Hotel


Mumbai, Taj Mahal Hotel
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Nao, nao ficamos alojados neste hotel... mas sempre da para ver em primeiro plano os baloes em forma de perna de frango que nos tentavam vender.

domingo, dezembro 11, 2005

Goa: Portugal no coracao

Goa recebeu-nos de bracos abertos no dia 17 de Novembro. A viagem ate ah antiga colonia portuguesa do Oriente foi longa e tortuosa, mas valeu a pena. O postal ilustrado coincide com a realidade e percebe-se facilmente por que eh que este eh um dos destinos preferidos das estrelas de cinema de Bollywood e turistas ocidentais endinheirados: ah sol, palmeiras, aguas paradisiacas e areias branquinhas.
Nos viemos em busca de descanso e encontramo-lo na forma de um por-do-sol magnifico na praia de Palolem. Nao nos faltou sequer a cabana na praia, como nas cancoes romanticas... so nao sabemos se nestas cantigas tambem ah formigas castanhas que picam e casas-de-banho equilibradas em estacas de madeira, ameacando cair a cada passo.
Mas em Goa encontramos tambem uma confortavel sensacao de estarmos em casa de uns primos que nao viamos ha muitos anos mas que nos tratam muito bem. Essa impressao de "calorzinho humano" comecou logo durante a viagem de aviao. Eu e o sexagenario muculmano que se sentou ao meu lado levamos o caminho todo na conversa - em portugues - e ate cantamos em unissono o Hino Nacional, entre gargalhadas e palmadinhas dele no meu braco (o PM dormia, por isso, nao assistiu a este momento unico).
Depois, quando chegamos ao aeroporto, somos surpreendidos por uma enorme quantidade de anuncios e neons com nomes portugueses (ate o casino local tem o luso nome de "Caravela"). A descoberta de Albuquerques, Menezes, Moraes e Sas nas tabuletas das casas comerciais continua ate chegarmos ah Afonso Guesthouse, onde somos recebidos em portugues por uma simpatica senhora. Ja em extase abrimos a porta da casa-de-banho e encontramos um lavatorio limpo. O PM desabafa: "Eh asseio ah portuguesa!"
Passear em Panjim permitiu-nos recuperar forcas e voltar a cair de amores pela India. O casario tipico pintado de cores fortes assinala a epoca colonial e as igrejas catolicas espalhadas por todo o territorio tem a marca dos portugueses.
Eu fui assistir a uma missa dominical rezada na lingua de Camoes e o PM foi ah procura do Padre Lagrange, que ah cinco anos atras o tinha recebido com cha e bolinhos na casa paroquial (mas disseram-nos que o senhor agora esta em Margao, num lar de idosos). Fomos passear a Velha Goa e constatamos que o conjunto formado pela Basilica do Bom Jesus (onde se encontram os restos mortais de S. Francisco de Assis) e a Se Catedral eh mais do que suficiente para converter qualquer agnostico renitente.
E ate tinhamos motivos para agradecer ao divino. Eh que com tantos sitios na India pouco indicados para ficar doente, o PM adoeceu precisamente no unico local onde existia uma Farmacia Salcete com um empregado que nos atendeu em portugues, e onde um Dr. Sa (medico muito respeitado em todo o Bairro das Fontainhas, onde estavamos hospedados) nos abriu a porta de sua casa as 7h30 da manha. Ate parecia que estavamos no Centro de Saude de Alges, com a diferenca que o Dr. Sa estava descalco. [AV]


A seguir: E se desconhecidos te derem os parabens em Cochim? Isso eh... uma imensa felicidade!

A caminho da Tailandia

A India ainda nao acabou (em termos do relato da nossa viagem) mas ja estamos de partida para novas paragens. Hoje de madrugada (dia 12 de Dezembro) esta previsto voarmos rumo ah Tailandia. Devemos aterrar em Bangkok pouco depois do meio-dia (hora local, julgo que mais 7 horas do que em Lisboa, informacao ainda por confirmar). Se ficamos uns dias na cidade - onde teremos de voltar mais tarde para apanhar outro aviao - ou se seguimos prontamente para outras paragens ainda eh uma incognita. Tal como eh essa "nova paragem" que tanto pode ser o Camboja ou o norte da Tailandia (montanhas). Nada de panico. Ainda temos umas horas de espera no auroporto para decidir. Afinal de contas, o voo eh so as 5h40 da manha...
Em principio sera o PM a relatar a estada tailandesa e, provavelmente, tambem os paises seguintes do sudoeste asiatico. Mas a AV nao vai estar parada e promete prosseguir e terminar o relato indiano. Ainda bem. Isso significa que as leituras deste blog nao vao descer drasticamente... Eh que o PM nao vai - nem consegue! - descrever os passos da viagem de forma tao completa (e belissima). Nao da para perceber por este post?!? :-) [PMM]

terça-feira, dezembro 06, 2005

Notas de viagem: India, duas faces da mesma moeda

Quando vou ao cinema, gosto particularmente de descobrir filmes cujas personagens sejam essencialmente humanas. Ou seja, que sejam essencialmente imperfeitas. Que sejam capazes de praticar o bem, mas tambem de resvalar para o mal. Que sejam capazes de discernir o certo e o errado mas nem sempre consigam agir correctamente. Que tenham a hipotese de se redimir mas nem sempre o consigam. Este andar no fio da navalha parece-me tornar as personagens mais reais. Mais proximas daquilo que quase todos nos somos, com honrosas e odiosas excepcoes. Seres imperfeitos, ah procura de um caminho, de um equilibrio. Claro que ainda me deleito com alguns filmes de Hollywood (das decadas de 40 e 50) onde tudo era esquematico e exacerbado. Sao caracteristicas proprias da epoca - e desses filmes - que nao deixaram de me deslumbrar. Mas a riqueza estraida das fitas onde predominam os tons cinza (ao inves da dicotomia "preto-branco", onde tudo esta demasiado claro) e necessariamente maior.
Serve esta introducao cinematica para ilustrar aquilo que penso desta primeira etapa da nossa viagem. A India eh um destino cinzento. Acabem com a utopia de alcancar os nirvanas espirituais facilmente logo ao aterrar na India. Esquecam as ideias forjadas de que neste canto do mundo tudo tem um sentido superior, divino. Mas tambem nao caiam no erro de pensar que a miseria, a sujidade, marcam presenca em cada milimetro quadrado deste territorio. A India eh uma imensa moeda. E, como todas as moedas que se prezem, apresenta duas faces distintas. Miseria e riqueza. Beleza e fealdade. Asseio e imundicie. Gentileza e agressividade. Progresso e atraso. Espiritualidade e materialismo. E por ai fora, numa extensa e se calhar infindavel listagem de extremos.
Eh isto que a India tem para oferecer ao viajante que esteja disposto a saborear este destino. Eh neste fio da navalha que temos de andar constantemente. Num estado de alerta permanente, com todos os sentidos a funcionar, para captar tanto os sinais de perigo como os momentos de excepcao. A India exige um enorme esforco de adaptacao. Saber esquecer os episodios maus para conseguir prezar e apreciar os acontecimentos bons. Saber ultrapassar as dificuldades do caminho para colher os frutos do esforco no destino. Saber olhar para o lado quando eh preciso sem nos tornarmos autistas ao que se passa em nosso redor. Acima de tudo, perceber que toda a moeda tem duas faces. E que mesmo assim, ambas as faces podem apresentar tons acinzentados. Tal como num bom filme onde as personagens nao sao maniqueistas.
Tenho dificuldade em fazer um juizo da India (na sua totalidade) apregoando aos sete ventos que isto eh um local maravilhoso ou que este eh um sitio horrendo. Por vezes, eh dificil explicarmos porque gostamos tanto de filmes que retraram realidades aterradoras, como as peliculas sobre o Holocausto. A verdade eh que eu gosto desses filmes. Gosto de me emocionar com eles, de perceber a dimensao que o mal pode assumir mas tambem a subtileza com que o bem se pode revestir. Dito isto, nao me resta outra solucao que nao afirmar que gosto da India. Mas nao apenas e so pelas razoes positivas, imaginarias, construidas, veiculadas e assumidas pelo Ocidente que culminam em slogans publicitarios tipo "um destino exotico e magico!". Gosto da India pela experiencia, muito humana, muito realista, muito verdadeira, de viajar num pais com duas faces. Da mesma moeda. [PMM]

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Khajuraho: UNESCO hardcore

Para chegar ah pequena localidade de Khajuraho, no estado de Madhya Pradesh, nao ha outra hipotese que nao seja apanhar um autocarro. Foi isso que fizemos na manha do dia 14 de Novembro, acompanhados por uma coreana (nao sabemos o nome dela) e do Jordi - catalao de Girona, arquitecto a trabalhar numa ONG no Sul da India. Depois de outra viagem de comboio atribulada (desta vez acordamos com o chao repleto de velhotas que nao percebemos bem de onde vieram nem para onde iam), juntamos-nos os quatro a outros quantos ocidentais e la fomos de riquexo para um ermo onde nos garantiram que o autocarro para Khajuraho iria passar. E passou mesmo. Alias, se ha coisa que funciona neste pais (estou a falar a serio) sao mesmo os autocarros. Todos os que precisamos de apanhar passam a horas e chegam no minuto (!) previsto ao destino.
Para conseguir esta pontualidade britanica, os condutores fazem malabarismos com o autocarro que quase se despedaca a cada mudanca. Pelo meio apitam furiosamente, ultrapassam perigosamente, cantarolam alegremente e nos nunca sabemos como eh que raio chegamos vivos. Em muitos autocarros nao ha portas e as janelas nao fecham. Mas ha uma caixinha de primeiros-socorros do tamanho de um radio de ouvir o relato aos domingos, o que eh um descanso.
Nesta viagem, colocaram as nossas mochilas no tejadilho do autocarro. Olhamos todos uns para os outros a tentar adivinhar o que fazer, mas ninguem ousou nada. Eu ainda alvitrei a pergunta que me andava a cirandar na cabeca: "is it safe"? O sorriso do homem respondeu-me. Mas a verdade eh que eu fiquei sem saber se era ou nao seguro.
Partimos. A viagem demora umas cinco horas. A musica grita dos altifalantes e ao fim de cinco minutos de ultrapassagens mortais deixo de me preocupar com isso. Ah chegada, temos que ser nos a ir buscar as malas ao tejadilho. O PM engole em seco. Tem vertigens. Eu dou um passinho timido em direccao as escadas. Mas ele - o meu super-homem - vence o medo das alturas e segue intrepido atras dos outros rapazes. Ele ainda hoje nao sabe como conseguiu fazer aquilo, embora tenha repetido a proeza no regresso.
Em Khajuraho, o dono de um hotel tenta convencer-nos a ficar la com o argumento de que no seu terraco passam, todos os dias, milhares de passaros... eu fiquei sem saber se aquilo era para rir ou para chorar. O cinefilo do PM lembrou-se do Hitchcock mas eu so queria era fugir das penas e da gripe das aves. Ainda assim ficamos (para sairmos no dia seguinte, expulsos pelos acaros).
Os templos de Khajuraho sao tao imponentes que se anunciam sem os procurarmos. Veem-se de quase todos os angulos da pequena localidade. Exactamente como os vendedores desta terra, que se caracterizam pela enorme persistencia (sem duvida, os mais chatos com que contactamos em toda a India).
No dia seguinte, temos encontro marcado com o erotismo, na forma de milhares de pequenas esculturas libidinosas esculpidas entre 900 e 1100 dC. Os templos de Khajuraho foram construidos durante a dinastia Chandela e sao hoje consideradas patrimonio mundial pela UNESCO. Na verdade, nem todas as pecas representam cenas de sexo, mas as mulheres rolicas estao por toda a parte em poses convidativas, la isso estao. Os guias fazem por explicar em pormenor aquilo que apontam, fazendo corar raparigas novas e outras com idade para ja terem juizo (eu, que ate sou de ruborizar, acho que disfarcei bem). Uma francesa de meia idade nao resistiu e desabafou com o marido: "Mas o que eh que lhes deu para desatarem a fazer isto?!"
Eu e o PM tambem nao sabemos o que nos deu, mas de repente sentimos que o amor andava no ar e as borboletas tambem e que o amor eh uma coisa linda!
No dia segunte ja nao estamos a fazer nada em Khajuraho. Nao conseguimos passar na rua principal sem sermos chamados para comprar, ver e mexer. Alem dos homens, tambem ha dezenas de criancas que, de bicicleta, nos acompanham em qualquer passeio que tentamos fazer. Querem levar-nos nao sabemos para onde, com a desculpa de que so querem treinar o ingles.
Decidimos partir. Na estacao das camionetas estao quase todos os ocidentais que vieram connosco, ah excepcao da coreana. Nos e o Jordi seguimos para Orccha. Ele vai para ficar ate ao dia seguinte. Nos vamos apenas fazer tempo ate serem horas do nosso comboio, que parte nessa noite de Jhansi em direccao a Delhi. Em Orccha, passeamos por ruas estreitas onde mulheres vendem pigmentos de tintas coloridas e diversas especiarias. Visitamos ruinas de um palacio e avistamos templos. O relogio para nas margens de um pequeno riacho. As aguas sao tao limpidas que ate custa a acreditar que estamos a ver a nossa imagem reflectida.
Quando o tempo volta a fazer tic-tac, iniciam-se as negociacoes com o homem do riquexo. A regatear quase de mao na anca, o PM desanca o malandro que queria dar boleia a dois amigos com os portugas a patrocinarem a brincadeira. Na manha seguinte, ja em Delhi, ameaca outro motorista (agora de taxi) de chamar a policia. Eh de homem! [AV]

Proximo capitulo: Goa ainda eh dos portuguses