terça-feira, dezembro 06, 2005

Notas de viagem: India, duas faces da mesma moeda

Quando vou ao cinema, gosto particularmente de descobrir filmes cujas personagens sejam essencialmente humanas. Ou seja, que sejam essencialmente imperfeitas. Que sejam capazes de praticar o bem, mas tambem de resvalar para o mal. Que sejam capazes de discernir o certo e o errado mas nem sempre consigam agir correctamente. Que tenham a hipotese de se redimir mas nem sempre o consigam. Este andar no fio da navalha parece-me tornar as personagens mais reais. Mais proximas daquilo que quase todos nos somos, com honrosas e odiosas excepcoes. Seres imperfeitos, ah procura de um caminho, de um equilibrio. Claro que ainda me deleito com alguns filmes de Hollywood (das decadas de 40 e 50) onde tudo era esquematico e exacerbado. Sao caracteristicas proprias da epoca - e desses filmes - que nao deixaram de me deslumbrar. Mas a riqueza estraida das fitas onde predominam os tons cinza (ao inves da dicotomia "preto-branco", onde tudo esta demasiado claro) e necessariamente maior.
Serve esta introducao cinematica para ilustrar aquilo que penso desta primeira etapa da nossa viagem. A India eh um destino cinzento. Acabem com a utopia de alcancar os nirvanas espirituais facilmente logo ao aterrar na India. Esquecam as ideias forjadas de que neste canto do mundo tudo tem um sentido superior, divino. Mas tambem nao caiam no erro de pensar que a miseria, a sujidade, marcam presenca em cada milimetro quadrado deste territorio. A India eh uma imensa moeda. E, como todas as moedas que se prezem, apresenta duas faces distintas. Miseria e riqueza. Beleza e fealdade. Asseio e imundicie. Gentileza e agressividade. Progresso e atraso. Espiritualidade e materialismo. E por ai fora, numa extensa e se calhar infindavel listagem de extremos.
Eh isto que a India tem para oferecer ao viajante que esteja disposto a saborear este destino. Eh neste fio da navalha que temos de andar constantemente. Num estado de alerta permanente, com todos os sentidos a funcionar, para captar tanto os sinais de perigo como os momentos de excepcao. A India exige um enorme esforco de adaptacao. Saber esquecer os episodios maus para conseguir prezar e apreciar os acontecimentos bons. Saber ultrapassar as dificuldades do caminho para colher os frutos do esforco no destino. Saber olhar para o lado quando eh preciso sem nos tornarmos autistas ao que se passa em nosso redor. Acima de tudo, perceber que toda a moeda tem duas faces. E que mesmo assim, ambas as faces podem apresentar tons acinzentados. Tal como num bom filme onde as personagens nao sao maniqueistas.
Tenho dificuldade em fazer um juizo da India (na sua totalidade) apregoando aos sete ventos que isto eh um local maravilhoso ou que este eh um sitio horrendo. Por vezes, eh dificil explicarmos porque gostamos tanto de filmes que retraram realidades aterradoras, como as peliculas sobre o Holocausto. A verdade eh que eu gosto desses filmes. Gosto de me emocionar com eles, de perceber a dimensao que o mal pode assumir mas tambem a subtileza com que o bem se pode revestir. Dito isto, nao me resta outra solucao que nao afirmar que gosto da India. Mas nao apenas e so pelas razoes positivas, imaginarias, construidas, veiculadas e assumidas pelo Ocidente que culminam em slogans publicitarios tipo "um destino exotico e magico!". Gosto da India pela experiencia, muito humana, muito realista, muito verdadeira, de viajar num pais com duas faces. Da mesma moeda. [PMM]

2 Comments:

At 4:19 da tarde, Anonymous Anónimo said...

a sónia queria deixar um comentário e não conseguia, pediu-me para tentar...

 
At 5:07 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Ai... que loucura! Finalmente consigo escrever umas palavras neste vosso espaço tão bem conseguido!
Parabéns a ambos.
Espero que todas estas crónicas e muitas outras que ainda não existem sejam, posteriormente, publicadas em papel. Merecem. Eu compro.
Entretanto, estou com pena de deixar as vossas deambulações por esse território grandioso que deve a ser a Índia, mas vá... toca a descobrir outros mundos.

Beijos aventureiros a ambos!

 

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